Centenas de capacetes azuis da ONU trocam sexo por comida ou sapatos

Um terço dos 480 casos de abuso e exploração sexual denunciados entre 2008 e 2013 envolvem menores de idade, conclui relatório que centrou as suas investigações em duas missões, Haiti e Libéria.

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Os membros da missão da ONU no Haiti “transaccionaram sexo” com pelo menos 231 mulheres e adolescentes /Marco Dormino/Reuters

As Nações Unidas identificaram o problema há uma década mas isso não impediu que centenas de mulheres tenham continuado a ser exploradas por capacetes azuis que a organização envia para ajudar populações em países por todo o mundo. Um relatório do Gabinete de Assuntos Internos da ONU concluiu que centenas de mulheres com fome ou sem aceso a medicamentos tiveram relações sexuais com capacetes azuis “motivadas por necessidades” básicas.

O Haiti e a Libéria, dois dos países mais pobres do mundo, são os países onde mais mulheres, pobres e com fome, o fizeram. “Provas recolhidas em dois países com missões de manutenção de paz demonstram que a transacção sexual é muito comum mas muito pouco denunciada em cada operação”, diz-se numa versão preliminar do relatório com data de 15 de Maio.

O relatório, ainda não publicado mas obtido e parcialmente divulgado pela Associated Press, descobriu que os membros da missão da ONU no Haiti “transaccionaram sexo” com pelo menos 231 mulheres e adolescentes. As alegações não são completamente novas, mas este relatório mostra como o problema se mantém: os investigadores estiveram no Haiti em 2014.

A ONU admite que o problema existe mas diz que as denúncias têm diminuído um pouco por todo o lado, ao mesmo tempo que a organização tem mais capacetes azuis do que nunca mobilizados,125 mil em 16 missões.

A verdade é que de 66 acusações em 2013 passou-se para 51 no ano seguinte. Mas este relatório também conclui que muitos casos “permanecem por denunciar”. A assistência proporcionada às vítimas é considerada “altamente insuficiente” e, em média, a investigação de uma denúncia demorara mais de um ano.

Entre 2008 e 2013 foram denunciados 480 casos de abuso e exploração sexual, um terço dos quais envolvem menores de idade.

“Para mulheres rurais, a fome, a falta de abrigo, a falta de medicamentos ou artigos para os seus bebés foram frequentemente citados como ‘o motivo que desencadeia’” o abuso, escreve-se no relatório. Em troca de sexo, mulheres e adolescentes podem receber “sapatos, telemóveis, computadores e perfumes ou dinheiro”.

No Haiti, o Gabinete de Assuntos Internos da ONU percebeu que algumas mulheres protestaram quando os capacetes azuis que lhes tinham prometido dinheiro em troca de sexo não pagavam. “Em casos de não pagamento, algumas mulheres ficam com os distintivos dos capacetes azuis e ameaçavam revelar a infidelidade”, pode ler-se no documento.

Mas a maioria não sabia que a ONU proíbe a exploração sexual: “Só sete das entrevistas sabiam das políticas das Nações Unidas a proibir abuso e exploração sexual”. Todas desconheciam a existência de uma linha telefónica onde estes casos podem ser denunciados. 

Haiti, Congo, Libéria e Sudão do Sul

Há exactamente dez anos, o jordano Zeid Ra'ad al-Hussein, actualmente Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, assinou uma investigação no Congo que abriu a porta ao debate sobre a exploração sexual por parte de capacetes azuis. Na altura, diferentes media denunciaram casos de violação de crianças – entre os onze e os 15 anos – e incitamento à prostituição no Haiti e na Libéria.

Quando o que ficou conhecido como o “relatório Zeid’ foi divulgado, a ONU garantiu que seriam postas em prática medidas para impedir estes casos, regras claras, inquéritos rápidos nas diferentes operações de manutenção de paz e acusações criminais para os abusadores. “Estamos comprometidos em fazer as reformas necessárias tão depressa quanto possível”, prometeu o então secretário-geral, Kofi Annan.

O que este relatório mostra é que pouco mudou, pelo menos nas mentes de alguns membros das missões. Os capacetes azuis, concluiu o Gabinete de Assuntos Internos, principalmente “funcionários com experiência em missões longas, consideram ‘em geral que as pessoas devem ter direitos românticos’ e vêem a sexualidade como um direito humano”.

Entre os 125 mil capacetes azuis espalhados pelo mundo, 7000 estão no Haiti. A seguir ao pequeno país, o país mais pobre do continente americano, a maior parte das alegações de abusos sexuais vêm do Congo, da Libéria e do Sudão do Sul.

“Mesmo com políticas e procedimentos mais duros em relação à exploração e aos abusos sexuais, os abusadores continuam sem ser responsabilizados”, denunciou o Stimson Center, um think tank de Washington, num relatório recente sobre o tema. “Enquanto continuarem a existir casos de exploração sexual a ONU deve concentrar-se em melhorar os esforços já feitos.”

O relatório do Gabinete de Assuntos Internos da ONU incluiu uma resposta do Departamento de Operações de Manutenção de Paz e Apoio ao Terreno, divulgado pela Reuters, onde este lamenta que os autores da investigação não tenham avaliado os esforços de prevenção já em vigor. “Isso teria permitido obter um retrato muito mais completo das medidas desencadeadas por vários departamentos para lidar com a exploração sexual”, afirma este departamento. A resposta não nega que muitos casos permanecem por relatar e investigar.

 

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