Vala comum de crianças ajudou a desenterrar nova vergonha escondida na Irlanda

Historiadora descobriu que quase 800 crianças morreram numa casa que acolheu durante décadas mães solteiras e os seus filhos. Era uma das instituições onde a Irlanda católica escondia as “mulheres caídas” e os “filhos do infortúnio”.

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Fotografia publicada no Connacht Tribune em 1924 e que ilustrava um artigo a louvar a atitude maternal das freiras DR

Há uma lembrança que continua a assombrar os sonhos de Barry Sweeney. “Havia uma placa de cimento. Nós costumávamos brincar ali, mas havia qualquer coisa oca por baixo, por isso decidimos levantá-la. [A fossa] estava cheia até cima de esqueletos”.

Sweeney tinha dez anos e o amigo Frannie Hopkins tinha 12 quando, em 1975, fizeram a macabra descoberta. Mas a população de Tuam, no Oeste da Irlanda, acreditou que os pequenos ossos pertenciam a vítimas da Grande Fome, que no século XIX dizimou mais de um milhão de pessoas. Só 39 anos depois, também por causa de memórias antigas (e de um peso na consciência), uma outra habitante da pequena cidade tirou o caso do esquecimento, destapando mais uma das vergonhas escondidas da História recente da Irlanda – a morte de dezenas de crianças, todos os anos, nas instituições onde as mães, solteiras, eram fechadas para que o seu pecado não contaminasse a moral pública.

As más condições nas casas criadas para alojar as raparigas que engravidavam fora do casamento (e para onde eram também mandados órfãos e crianças abandonadas) não são uma novidade. Vários relatórios, alguns escritos ainda na década de 1930, dão conta da elevada taxa de mortalidade entre as crianças que ali viviam – em algumas delas houve anos em que morreram metade dos menores internados. A malnutrição e as doenças (sobretudo tuberculose e gastroenterite) ceifavam a vida de crianças que, em muitos casos, nasciam com baixo peso ou tinham deficiências congénitas. Os inspectores falavam também na degradação de edifícios sobrelotados, de cuidados médicos escassos, de crianças de ar alheado e enfermo.

Os irlandeses sabiam também que as mães solteiras, “mulheres caídas em desgraça”, e os filhos que geravam tiveram durante décadas poucos ou nenhum direito – sabiam-no pelo menos desde Philomena, o filme nomeado neste ano para um Óscar de Hollywood e que é baseado na vida de Philomena Lee que, em 1952, quando tinha 18 anos, foi levada para uma destas instituições para ter um filho que foi vendido depois pelas freiras a um casal americano e que ela nunca mais viu.

Mas como nos outros escândalos que mudaram a forma como os irlandeses olham para o seu passado recente – os padres pedófilos que a hierarquia protegeu, os maus-tratos nas escolas industriais para onde eram enviados os órfãos, a escravatura nos asilos para “raparigas problemáticas” – foi preciso um choque para que aquilo que “toda a gente já sabia” se transformasse em indignação. Coube a Catherine Corless, uma historiadora local, dar agora esse abanão.

"Um passado negro"

Interrogando-se sobre o que teria acontecido às “Crianças da Casa”, como eram conhecidos em Tuam os meninos e meninas que viviam no asilo para mães solteiras gerido pelas irmãs do Bom Socorro, Corless ouviu falar dos esqueletos descobertos numa antiga fossa séptica nos terrenos que tinham pertenciam à instituição. Decidiu pedir à conservatória local os registos de todos os óbitos de crianças ocorridos na Casa entre 1925 e 1961, o ano em que o asilo fechou.

“Uma semana depois a pessoa que contactei telefonou-me a perguntar se eu queria todos aqueles dados. Eu disse-lhe que sim. Ela explicou-me que teria de pagar por cada um dos registos e perguntou-me se eu tinha noção da enormidade de mortes que ali tinham acontecido”, contou a historiadora ao site de notícias IrishCentral. Eram 796 crianças, quase uma morte a cada duas semanas nos 36 anos que a instituição esteve em funcionamento. Segundo os registos, a mais velha tinha nove anos, a mais pequena dois dias. As certidões de óbito, quando as havia, indicavam que tinham morrido de tuberculose, tosse convulsa, convulsões, sarampo, bronquite, meningite…

Corless confirmou que os cemitérios locais não têm registo de que alguma das crianças ali tenha sido sepultada, o que a leva a acreditar que os corpos terão sido enterrados, sem direito a marcação nos terrenos que pertenceram à Casa para Mães e Filhos de Santa Maria, entretanto demolida e onde a população erigiu um pequeno altar após a descoberta de 1975.

Em entrevista ao Irish Times, a historiadora sublinha que, ao contrário do que a imprensa noticiou, nunca afirmou que os quase 800 cadáveres tivessem sido todos depositados na fossa séptica – Frannie Hopkins, ouvido pelo mesmo jornal, disse que no tanque de 120 por 60 cm estariam “cerca de 20” esqueletos. “Eram pequeninos, pareciam muitos para uma campa tão pequena como aquela”, contou ao jornal Irish Independent.

Mas a notícia de que corpos de crianças tenham sido deitados numa fossa como lixo forçou o Governo irlandês a prometer um inquérito às circunstâncias em que os menores morreram e foram sepultados, admitindo alargar a investigação às condições de vida na dezena de instituições idênticas criadas na Irlanda após a independência, em 1922. “Estas revelações são uma lembrança de um passado negro em que as crianças estavam longe de ser acarinhadas”, admitiu Charlie Flanagan, o ministro para a Infância.

Zelar pela moral

Um inquérito que, a ganhar corpo, será a quinto empreendido pelo país na última década – dois deles sobre a pedofilia na Igreja – e que promete mostrar, mais uma vez, a crueldade a que foram sujeitos os mais pobres e frágeis, entregues a instituições geridas por uma Igreja Católica que durante grande parte do século XX se substituiu ao Estado na assistência social e a quem era reconhecido o papel de zelador da moral do país.

Dentro dos muros dos conventos e asilos, a violência funcionava, em simultâneo, como punição e forma de redenção, como revelou o inquérito concluído em 2013 às Lavandarias de Maria Madalena, uma rede de albergues onde milhares raparigas que tinham sido mães solteiras, que eram órfãs ou simplesmente vistas como namoradeiras foram durante décadas sujeitas a trabalho escravo, violência física e psicológica.

Tal como as lavandarias, as casas para as mães solteiras eram geridas por ordens religiosas, que recebiam financiamento do Estado (um tanto por cada cabeça). No caso de Tuam, foram as irmãs do Bom Socorro, uma ordem nascida durante a Revolução Francesa para acorrer a enfermos e inválidos e que no início dos anos 1920 foi encarregada pelas autoridades do condado de Galway de tomar conta de dezenas de “filhos do infortúnio”, como lhes chamou um jornal local. O artigo do Connacht Tribune, escrito um ano antes de a instituição se mudar para as instituições definitivas, louva a “atitude maternal” das freiras e é acompanhado de uma imagem em que meia dúzia de crianças olham, desconfiadas e sem sorrir, para a lente do fotógrafo.

Não é a única vez que a Casa aparece na imprensa. Desde que o caso de Tuam foi noticiado um historiador de Limmerick publicou no Twitter mais de uma dezena de recortes de jornais antigos que revelam, por exemplo, o aceso debate que houve na cidade em 1928 sobre os dez pence (12 cêntimos de euro) que cada criança custava por semana ao erário público ou como, um ano antes, os responsáveis do hospital local se lamentavam de estarem a atender cada vez mais grávidas solteiras.

Este repúdio pelas “mulheres em pecado”, explicou o historiador Diarmaid Ferriter à rádio irlandesa Newstalk, começava desde logo nas famílias, numa sociedade que via a gravidez fora do casamento como “um estigma e uma vergonha”. “Havia uma enorme pressão para esconder o problema, afastá-lo dos olhares públicos” o que arrastava as jovens grávidas para estas instituições. “O meu pai deixou-me com as freiras. Ele estava tão envergonhado. Disse a toda a gente que eu tinha morrido”, conta a personagem de Philomena no filme.

As que sobreviviam ao parto tinham que trabalhar de graça, às vezes dois, outra vez quatro anos, para pagar o acolhimento das freiras. As “reincidentes” eram vistas como “pecadoras penitentes” e arriscavam ser levadas para as lavandarias. Não tinham direito a decidir sobre a sorte dos filhos, a maioria dos quais eram adoptados (ainda que só em 1952 o país tivesse aprovado uma lei de adopção) ou enviados para as escolas industriais.

Enorme mortalidade

Catherine Corless lembra-se bem destas crianças, do tempo em que partilhou com elas a sala de aulas num colégio católico de Tuam. “Elas eram sempre segregadas num dos lados da sala de aula. Ao fazerem isto as freiras enviavam a mensagem que elas eram diferentes e devíamos afastar-nos”, contou ao site IrishCentral, lembrando com a consciência pesada o dia em que imitou outra colega e entregou a uma menina da Casa uma pedra embrulhada num papel de chocolate. “Anos mais tarde perguntei-me o que teria acontecido àquela pobre criança que nunca tinha visto um doce”.

As condições de vida nestas casas terão sido mais terríveis até meados do século XX. Na Irlanda das décadas de 1930 e 1940, explicou ao Irish Times Liam Delaney, professor de Economia da Universidade de Stirling, 70 em cada mil crianças morriam antes de completar um ano de idade e a mortalidade entre as crianças “ilegítimas” chegava a ser cinco vezes superior à média. Vistas como a prova do pecado das mães, eram negligenciadas ou abandonadas pela família e a sorte das que viviam em instituições era pouco melhor.

Diarmaid Ferriter cita dados recolhidos por inspectores de saúde, um dos quais refere que 35% das crianças nascidas na Casa de Tuam no ano de 1943 tinham morrido. Em Bessboro, uma outra instituição que chegou a fechar temporariamente por falta de condições, 61% dos menores que ali viviam morreram no mesmo ano. O relatório de uma visita a Tuam, em 1944, dá conta de crianças “frágeis, com as barrigas inchadas, emaciados” e o caso de um bebé com nove meses “cuja carne pendia dos membros”. Na casa, com capacidade máxima para 243 pessoas, viviam 271 crianças e 61 mulheres. As obras prometidas para o local, várias vezes referenciadas na imprensa, nunca chegaram a acontecer.

O historiador admite que “há inúmeras razões económicas e sociais”, comuns na Irlanda de então, que explicam a elevada mortalidade infantil nas casas para mães solteiras, “mas há também um grau de negligência, a malnutrição e o falhanço no tratamento de doenças infecciosas, porque não havia como tratá-las ou simplesmente porque não havia vontade de o fazer”.

Apurar se houve negligência ou mesmo maus-tratos por trás das mortes que ficaram esquecidas nos registos de Tuam é a tarefa do inquérito prometido por Dublin – um objectivo que poderá ser dificultado porque nem a diocese local nem a ordem do Bom Socorro, hoje responsável pela maior rede de hospitais privados da Irlanda, dizem ter documentação sobre aquelas mortes. Corless, que integra um comité que há meses tenta reunir fundos para erguer um memorial com os nomes de todas crianças que morreram na casa, espera apenas que, depois do escândalo, o assunto não volte a cair no esquecimento. “A verdade seria muito bem-vinda”.

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