Cameron diz que é altura de a União Europeia mostrar os dentes à Rússia

Primeiro-ministro britânico endurece o discurso e acusa alguns países da UE de não quererem "enfrentar as implicações do que está a acontecer no Leste da Ucrânia".

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"Portamo-nos muitas vezes como se precisássemos mais da Rússia do que a Rússia precisa de nós", acusou o primeiro-ministro britânico GEORGES GOBET/AFP

Perante a relutância de alguns países da União Europeia em endurecerem a posição contra a Rússia pelo que consideram ser a responsabilidade do Presidente Vladimir Putin no conflito na Ucrânia, o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, soltou no domingo um grito de frustração, que funcionou também como um puxão de orelhas a muitos dos seus parceiros comunitários.

As palavras de Cameron, publicadas nas páginas do jornal The Sunday Times, são das mais duras que algum líder ocidental já proferiu desde o início da crise na Ucrânia.

"A relutância por parte de muitos países europeus em enfrentar as implicações do que está a acontecer no Leste da Ucrânia arrasta-se há tempo de mais. Chegou a hora de fazer valer o nosso poder, a nossa influência e os nossos recursos. As nossas economias são fortes e estão a ficar mais fortes. E, no entanto, portamo-nos muitas vezes como se precisássemos mais da Rússia do que a Rússia precisa de nós", acusou o primeiro-ministro britânico, salientando sempre que não equaciona qualquer intervenção militar.

Os avisos de David Cameron a Moscovo abrangeram também o desastre do voo MH17 da Malaysia Airlines, que terá sido abatido por um míssil terra-ar no Leste da Ucrânia, em território controlado pelos rebeldes separatistas pró-russos.

Ainda mais directo do que o Presidente norte-americano, Barack Obama, o chefe do Governo britânico subiu um degrau na longa escada das trocas de acusações. Se se provar que foram os combatentes separatistas que abateram o avião, a morte das 298 pessoas que seguiam a bordo "é o resultado directo da desestabilização de um Estado soberano pela Rússia, da violação da sua integridade territorial, e do apoio, treino e armamento de milícias de bandidos", escreveu David Cameron.

Impasse nas investigações
Apesar das palavras duras do primeiro-ministro britânico, o início das investigações ao desastre do voo MH17 da Malaysia Airlines na Ucrânia assemelha-se cada vez mais ao impasse no campo de batalha entre os combatentes separatistas e as forças do Governo de Kiev, que lutam desde o início de Abril.

Há propostas de cessar-fogo para que os investigadores internacionais possam fazer o seu trabalho de forma independente e há promessas de que toda as partes vão colaborar com as organizações internacionais, mas o tempo vai passando e o cenário de horror continua a entrar pelos olhos de quem abre os jornais, liga a televisão ou entra nas redes sociais.

Três dias depois do desastre, os líderes internacionais – em particular da Ucrânia e dos Estados Unidos – continuam a acusar os combatentes separatistas de não garantirem o acesso de peritos independentes à área por onde estão espalhados os destroços do Boeing 777, e os rebeldes pró-russos continuam a dizer que os especialistas só não estão lá porque não querem.

É um jogo semelhante ao que está a decorrer no campo de batalha: um dos lados promete ceder, mas apenas se o outro lado ceder ainda mais. Mas a verdade é que o tempo passa e ninguém cede, e os líderes internacionais pouco têm feito para além de irem apertando cada vez mais as orelhas aos protagonistas.

Domingo, três dias depois do desastre, o primeiro-ministro britânico manteve conversas separadas com o Presidente francês, François Hollande, e com a chanceler alemã, Angela Merkel, e todos chegaram à conclusão de que "a prioridade imediata é garantir o acesso ao local do desastre e assegurar que as equipas de especialistas consigam recuperar os corpos das vítimas".

Para além do sentimento de urgência que tem sido repetido desde quinta-feira passada, os líderes europeus "concordaram que o Presidente Putin tem um papel importante em convencer os separatistas a concederem acesso e a trabalharem com a comunidade internacional, para garantirem que tudo o que tem de ser feito poderá ser feito o mais rapidamente possível", disse ao jornal The Guardian um porta-voz do Governo britânico, citado sob anonimato.

Apesar da repetição de ideias, os três líderes avançaram a hipótese de "reavaliarem a sua abordagem em relação à Rússia" e defenderam que os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia "devem preparar-se para impor novas sanções à Rússia", na reunião de terça-feira.

OSCE limitada
O local do desastre tem sido visitado pelos membros da Missão Especial de Observação da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), mas afirmar que tem sido possível verificar tudo de uma forma livre e independente é esticar os limites da boa vontade.

No resumo diário publicado no site da OSCE, os membros da missão dizem que tiveram "um acesso muito limitado" aos destroços do avião, perto da cidade de Hrabove, 79 quilómetros a leste de Donetsk, uma área controlada pelos combatentes separatistas.

"Havia corpos na área, sinalizados, mas expostos aos elementos. Não foi observado qualquer processo de recolha de destroços. Alguns dos combatentes da 'República Popular de Donetsk' [as aspas estão no comunicado da OSCE] estavam visivelmente bêbedos e agressivos", relataram os membros da missão de observação.

A referência ao estado de embriaguez de alguns dos separatistas foi aproveitada pelo secretário de Estado norte-americano, John Kerry, para repetir – mais uma vez – o sentimento de urgência na chegada de peritos independentes ao local. "Hoje [domingo] recebemos relatos de que separatistas bêbedos empilharam restos mortais, sem quaisquer cerimónias, e que os retiraram do local. Estão a interferir com as provas. Pelo que sabemos, também retiraram partes do avião", disse Kerry, em entrevista ao programa da CNN State of the Union.

Os separatistas confirmaram que retiraram pelo menos 196 corpos do local do desastre e que os colocaram num comboio, mas apenas por "razões humanitárias" – e voltaram a queixar-se do atraso na chegada de peritos à região.

"Estamos a convidá-los há três dias, mas até agora ninguém veio, à excepção de quatro especialistas ucranianos", disse Serguei Kavtaradze, próximo do homem que se intitula primeiro-ministro da autoproclamada República Popular de Donetsk, citado pelo canal russo RT.

O próprio "primeiro-ministro", Alexander Borodai, já se tinha queixado da ausência de especialistas internacionais no terreno. "Várias dezenas de peritos estão em Kiev. Podem vir para cá mais depressa? Estamos surpreendidos, e francamente furiosos, por termos de manter a área intacta, enquanto esperamos tanto tempo por eles", disse o líder separatista.

Apesar das críticas de John Kerry, o porta-voz da OSCE, Michael Bociurkiw, vê na colocação dos corpos em carruagens refrigeradas um "desenvolvimento positivo".

“Conseguimos inspeccionar as carruagens. Estavam de facto refrigeradas. Todos os sacos que vimos tinham etiquetas. Disseram-nos que estavam lá 169 corpos. Se estes corpos forem mesmo do desastre, penso que é um desenvolvimento positivo que tenham sido postos num único local", disse o responsável aos enviados do The Washington Post.

Os combatentes pró-russos propuseram também um cessar-fogo, mas – tal como tem acontecido com os combates – era uma proposta que Kiev nunca iria aceitar.

"Garantimos a segurança de peritos internacionais no local da tragédia, se Kiev concordar com um cessar-fogo. Apelamos a Kiev que assine imediatamente este acordo com a República Popular de Donetsk, pelo menos durante o tempo em que os especialistas trabalharem na investigação ao desastre", lê-se num comunicado citado pela agência russa RIA Novosti.

A resposta do Governo ucraniano não tardou e chegou na forma de uma acusação de cinismo aos separatistas, a quem as autoridades de Kiev se referem como "terroristas". "Se os terroristas quisessem que os peritos chegassem ao local, teriam feito isso imediatamente após a sua chegada. Mas os peritos chegaram e ainda não houve nenhum cessar-fogo da parte dos terroristas. Por isso, as condições das declarações deles não têm quaisquer fundamentos", disse Andri Lisenko, porta-voz do Conselho de Defesa e Segurança Nacional Ucraniano, numa conferência de imprensa este domingo.

Rebeldes têm caixas negras
Enquanto os separatistas e as forças de Kiev continuam a travar as suas batalhas nas proximidades do local onde o avião da Malaysia Airlines se despenhou, a guerra de informação e manipulação prossegue cada vez mais acesa.

Exemplo disso é o paradeiro das caixas negras do Boeing 777 – uma delas apareceu na quinta-feira, outra foi encontrada na sexta-feira, mas ambas desapareceram no sábado, tudo segundo indicações dos separatistas, que controlam aquela área.

No domingo, chegou finalmente o que parece ser um esclarecimento final, ainda assim com algumas reticências, mesmo depois de a agência Reuters ter divulgado um vídeo em que se pode ver elementos das equipas de resgate a transportarem um objecto cor de laranja – a cor dos objectos conhecidos como caixas negras.

"Alguns itens, entre os quais estão presumivelmente as caixas negras, foram encontrados, e foram levados para Donetsk, onde estão sob o nosso controlo", disse Alexander Borodai em conferência de imprensa.

Para o líder rebelde, não é possível dizer com certeza absoluta que entre os objectos levados para Donetsk estão as caixas negras, porque só especialistas poderão identificá-las. "Não há especialistas entre nós que possam identificar o aspecto das caixas negras, mas trouxemos alguns equipamentos técnicos que podem ser de facto as caixas negras do avião", disse Borodai.
 

   

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