Dúvidas, avisos e irritações na passagem à prática do acordo grego

O FMI avisa que sem uma reestruturação profunda da dívida e a Grécia mostra não acreditar no acordo que assinou. Irritados com estas dificuldades, os alemães voltam a falar da saída do euro.

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Alexis Tsipras diz cumprir acordo que assinou "com uma faca ao pescoço"

Se chegar a um acordo foi difícil, já há motivos para concluir que passá-lo à prática não será mais fácil. Três dos principais actores na actual crise grega - o governo Syriza, a liderança alemã e o Fundo Monetário Internacional mostraram nos dois dias a seguir ao acordo que, apesar do do resultado final da cimeira de segunda-feira, permanecem divergências suficientes para colocar em causa o entendimento então atingido.

Na terça-feira, as exigências feitas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para poder dar o seu contributo para o empréstimo de 86 mil milhões de euros planeado para a Grécia subiram de tom. Na sua análise de sustentabilidade da dívida pública grega, a entidade liderada por Christine Lagarde revelou estar agora, ao fim de quase três semanas de bancos fechados e controlos de capital, ainda mais pessimista. Antecipa que a dívida irá subir até aos 200% do PIB nos próximos dois anos e manter-se ainda acima dos 170% em 2022.

O aviso do Fundo é claro: para que a dívida se torne sustentável é precisa uma reestruturação de muito mais significativa do que aquilo que os Governos europeus (os detentores da dívida reestruturável) estão a planear fazer. De acordo com as contas do FMI, é preciso aumentar o período de carência da dívida (o tempo em que a Grécia fica liberta de qualquer encargo com a dívida) para os 30 anos.

Estas contas entregues aos Governos europeus estão a ser vistas como um aviso em relação às enormes dificuldades que o Fundo terá em participar no novo empréstimo à Grécia. E são um verdadeiro desafio para a Alemanha, que é dos países que mais deseja a presença do FMI no programa, mas em simultâneo não está disponível para um alrgamento dos prazos da dívida que seja na verdade "um corte do valor da dívida encapuçado", como disse esta quarta-feira o prota-voz do ministério das Finanças.

Para reduzir o seu próprio contributo, os responsáveis políticos europeus têm esperança que, dos 86 mil milhões de euros de empréstimo, 26 mil milhões possam vir do Fundo (os 16 mil milhões que ainda sobram do actual programa mais 10 mil milhões que poderiam ser acrescentados). O Fundo – onde muitos dos accionistas colocam em causa a exposição que já foi assumida face a um país europeu – enfrenta contudo obstáculos com as suas regras.

Em primeiro lugar, não pode emprestar a um país que lhe esteja em falta, como acontece com a Grécia que tem 2000 milhões de euros de pagamento em atraso no FMI. É preciso que estas dívidas sejam saldadas para que um novo empréstimo venha a ser considerado.

Depois, e mais importante, o Fundo apenas pode conceder empréstimos a países cuja dívida seja considerada sustentável. Isto é, no caso da Grécia, ou os países europeus aceitam uma reestruturação de dívida muito mais profunda do que a que estão actualmente a considerar, ou o FMI não participa.

O ministro das Finanças francês tentou esta terça-feira retirar importância a estas diferenças de opinião entre o Fundo e a zona euro. “O FMI está a dizer o mesmo que nós, que não conseguimos ajudar a Grécia se mantivermos os mesmos encargos no reembolso da dívida sobre a economia”, disse Michel Sapin. No entanto, muitos duvidam que países como a Alemanha venham a aceitar uma reestrutração de dívida tão acentuada como aquela que o FMI considera necessária.

“Faca ao pescoço”

Entretanto na Grécia, o Governo Syriza tem, como se esperava, grandes dificuldades em se manter unido à medida que começa a passar à prática aquilo que acordou em Bruxelas.

A votação desta quarta-feira de quatro diplomas assim como do conteúdo do acordo mostra rupturas entre Tsipras e a ala mais radical do Syriza e, possivelmente, o partido nacionalista com que forma coligação.

Mas mesmo que o acordo passe no parlamento, o que vai ficando mais claro do que nunca é a falta de confiança no acordo demonstrada pelo Governo que verdadeiramente tem de o implementar.

Na terça-feira à noite, nas vésperas da votação, o primeiro-ministro grego usou a expressão “faca ao pescoço” para explicar porque é que assinou o acordo. “A minha prioridade é garantir que a escolha que fiz no outro dia, com uma faca ao pescoço, é finalizada”, disse Alexis Tsipras.

Ao mesmo tempo, o ministro da Economia grego mostrou muitas dúvidas sobre a possibilidade de a Grécia conseguir encontrar 50 mil milhões de activos para colocar no fundo de privatizações acordado com os parceiros europeus. Apesar de reconhecer que a dimensão do empréstimo, “que é muito dinheiro”, exige a existência de algum tipo de garantia, George Stathakis defendeu que “obviamente não existe” a possibilidade de encontrar activos a privatizar num montante de 50 mil milhões de euros.

Irritação alemã

Estas dúvidas gregas em relação ao acordo estão a reforçar ainda mais as dúvidas que existem na Alemanha. O vice-ministro das Finanças não gostou especialmente de ouvir aquilo que foi dito por Tsipras sobre a “faca ao pescoço”. “Aquilo que o primeiro-minsitro grego disse na televisão grega irrita-me. Quando alguém diz ‘eu realmente não apoio aquilo que estou a fazer agora’, acho que isso é um problema, que não cria confiança”, disse Jens Spahn.

Wolfgang Schäuble já tinha na terça-feira, um dia depois de Merkel ter assinado o acordo, mostrado as suas dúvidas em relação à sua aplicação prática, regressando à “solução B” que tinha apresentado no sábado ao Eurogrupo. Sobre uma saída da Grécia do euro, o ministro da Finanças da Alemanha disse que “há muitas pessoas dentro do governo alemão que acreditam esse poderia ser, ou que pode ser, a melhor solução para a Grécia e o povo grego”.

Empréstimo de transição difícil

Este cenário de falta de confiança entre as partes ameaça ter um impacto muito imediato na situação financeira da Grécia. É que, além dos 86 mil milhões de euros previstos para o terceiro resgate financeiro à Grécia (e que só começam a ser libertados após a conclusão das negociações para um novo programa dentro de quatro semanas), está previsto que seja libertado um empréstimo de transição que permita à Grécia fazer face aos seus compromissos mais imediatos, como a dívida em atraso ao FMI ou o pagamento das obrigações que são detidas pelo BCE.

O problema é que os governos europeus estão a ter dificuldades a chegar a acordo sobre quem é que vai libertar esse dinheiro. O recurso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade é considerado impossível porque este exige a existência de um programa com condições que teria de ser negociado.

Por isso, a Comissão Europeia propôs que o empréstimo seja feito através do fundo no qual participam todos os 28 Estados-membros da União Europeia, o Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira. O obstáculo neste caso é convencer os países da EU que não fazem parte do euro a aceitar participar. O Reino Unido, em particular, tem-se mostrado contrário a esta solução, mas Bruxelas acena com a possibilidade de serem previstas garantias que protejam os países fora do euro de perdas significativas.

Um acordo para um empréstimo de 7000 milhões de euros (para a Grécia pagar 4200 milhões ao BCE no dia 20 e amortizar as dívidas de 400 e 2000 milhões de euros ao Banco da Grécia e FMI) pode ser atingido esta quinta-feira no Eurogrupo, se houver entendimento sobre o assunto e se os ministros das Finanças ficarem satisfeitos com a votação no parlamento grego.

Outra reunião decisiva ocorrerá no BCE, quando o conselho de governadores discutirá o que fazer ao financiamento de emergência aos bancos gregos. Se mantiver a linha de crédito congelada nos 89 mil milhões de euros, pouco mudará, com os bancos fechados e os limites aos levantamentos em vigor. Se houver um aumento, os bancos talvez possam abrir, mas parece certo que os controlos de capital, face à instabilidade da situação, estão para durar, com impactos na economia.

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