“Brexit”: Shakespeare em Londres e em Lisboa

À boa maneira dos enredos “shakespearianos”, Cameron já morreu e morreu sem honra nem glória.

1. Começo por duas trivialidades. Primeira: seria totalmente irrealista pensar que a política não passa por projectos de poder pessoal, ancorados na ambição e em puros ou impuros apetites humanos. Este é um factor muito importante, retratado por gerações contínuas de filósofos, escritores e historiadores, sendo Maquiavel o mais invocado (embora muitas vezes injustamente ou a despropósito). A ambição pessoal, medida ou desmedida, tem um papel inegável no desenvolvimento das grandes tramas e dos grandes dramas políticos. A segunda trivialidade reside, por sua vez, na verificação de, que por detrás da votação britânica da passada quinta-feira, estão factores muito complexos de natureza altamente heterogénea. Reduzir a situação em que se pôs o Reino Unido – que já designei como a de “dividir para não reinar” – ao resultado mero de uma guerra civil partidária ou de uma luta pessoal pelo poder e pela sobrevivência política seria obviamente uma simplificação pueril.

2. Isto assente, não vale a pena menosprezar que o referendo foi altamente marcado por uma sucessão trágica – trágica no sentido absoluto da tragédia “shakespeariana” – de impulsos carnais para a mais estrita sobrevivência política pessoal. Todo o ambiente da decisão que leva ao referendo é uma desenvolução da guerra civil que atravessa o Partido Conservador e da história pessoal e relacional dos seus dirigentes. É bem sabido que David Cameron e Boris Johnson partilhavam a ambição e a carreira política desde os tempos do Eton College – a escola da elite britânica. E que, por entre momentos de convergência e de alinhamento, se vigiavam constante e atentamente, numa relação de indisfarçável rivalidade. Quando Cameron insistia com Johnson para que este se candidatasse ao posto de “mayor” de Londres, o excêntrico Boris suspeitava de que David apenas o queria afastar das proximidades de Downing Street.

3. Quando Cameron, pressionado pela legião eurocéptica dos conservadores, prometeu o referendo, não o fez por qualquer convicção de que isso correspondesse ao interesse geral ou à sua visão do futuro da Grã-Bretanha. Fê-lo apenas e só por puro instinto físico de sobrevivência política: se não o fizesse, a sua cabeça estaria a prémio na liderança dos “tories”. Como é próprio do fado e do destino das tragédias, venham eles das bruxas de Macbeth, do fantasma de Hamlet ou dos antiquíssimos coros gregos, as coisas não correram de feição. Cameron não contava ter maioria absoluta e, em precisando de um parceiro – designadamente, tão pró-europeu como os liberais-democratas –, tinha a desculpa ideal para não poder fazer o plebiscito. Mas o destino tece as suas malhas e, surpresa das surpresas, teve maioria absoluta. Depois, deu-se a negociação europeia que, não lhe correndo mal, correu apenas nos limites para salvar a face – o que dava trunfos aos adversários. Quis acelerar o processo, de modo a que a consulta fosse antes de férias: quanto mais rápida, mais probabilidades haveria de ganhar a permanência. O iter trágico deixou, porém, a sua marca: a crise dos refugiados eclodiu com dramatismo, estrondo e alarmismo, dando lugar e aso a todas as demagogias e a todos os populismos. Mas não esqueçamos: tudo começara por um capricho humano de mera sobrevivência, não por uma convicção fundada e liderante.

4. Há muitos anos, em 2007, um grande político português avisou-me: “em política, é sempre possível pior”. E as coisas desataram a correr bem pior quando o louríssimo Boris Johnson, desde sempre conhecido por ser um conservador pró-europeu, resolveu dizer que votaria e lideraria a campanha a favor do “Brexit”. Era a vingança do velho companheiro de rota que, cego pela sua ambição pessoal de chegar a Primeiro-Ministro, abandonava as suas convicções pessoais. O referendo não era para ele um momento de afirmação do seu credo político, era um instrumento de esventrar Cameron e tomar o seu lugar. Um qualquer Claudius de Hamlet ou um Macbeth não fariam melhor. E, de cabelo ao vento, pôs todo o seu peso a favor da saída da União, não hesitando na demagogia e até na vulgaridade (como se viu na reacção à posição de Obama). Mais uma vez, o desígnio da nua ambição pessoal foi posto à frente daquilo que ele até ali tinha julgado ser o interesse britânico.

5. À boa maneira dos enredos “shakespearianos”, Cameron já morreu e morreu sem honra nem glória. Na verdade, pode ainda tornar-se o responsável pela dissolução do Reino Unido e isso é epíteto que, julgo, nenhum Primeiro-Ministro britânico se orgulharia de ostentar. A verificar-se, será o clímax da tragédia em que perfidamente se quis envolver. Boris Johnson pode ainda chegar ou não ao tão almejado cargo, mas se tiver de lidar com a secessão da Escócia ou com a unificação da Irlanda, o seu destino – tão resplandecente como o seu cabelo – será amargo e pungente. Jeremy Corbin, que jogou na ambiguidade e que se julgava um Tsipras ou um Iglesias inglês – este, desde ontem mais uma vítima do Brexit –, está agora a braços com a rebelião interna que dele há-de cuidar.

6. Também em Portugal, há um político que subiu à liderança a galope de uma ambição desmedida e que, depois de ter perdido eleições, não hesitou em pôr a sua carreira à frente do interesse geral. António Costa, ao fazer uma coligação entre um partido pró-europeu de esquerda moderada, como é o PS, com a esquerda radical e populista do Bloco e do PC, pôs a sobrevivência política pessoal acima do interesse geral, do legado do seu partido e até da sua presuntiva convicção. E quem sacrifica todo o complexo político à pura sobrevivência pessoal, como ensina o “Brexit”, morre inexoravelmente às mãos do destino. Esta nova crise europeia vai pôr a nu a contradição fundamental entre pró-europeus e demagogos de extrema-esquerda. Por mais que os astros lhe sorriam, o destino fará pagar quem sobrepôs o instante da mera sobrevivência política ao interesse geral e permanente.

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