Brasil: estas são as caras de que se fala quando não se fala de política

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Ernesto Neto AFP

Para Barack Obama, Lula da Silva é “o cara”. Mas o imenso Brasil que amanhã vota na segunda volta das presidenciais conta com muitas outras “caras” que ajudaram à sua internacionalização. Um escritor, um guru do marketing, um defensor da conservação da natureza, dois arquitectos, um coreógrafo, um criador de moda, um cineasta, uma actriz e um artista plástico – uma geração que acredita ter ainda “tudo” a fazer pelo país.

1.João Paulo CuencaDa geração que saiu da Internet para o mundo

João Paulo Cuenca faz parte dos “39 escritores com menos de 39 anos” (naturais de um país da América Latina) que foram considerados os mais importantes da actualidade pela Bogotá Capital Mundial do Livro 2007 e pelo Hay Festival em 2007. Pertence ao grupo dos que têm “todo o potencial para definir as tendências que marcarão a literatura latino-americana”, segundo o júri.

Publicou há uns meses o seu terceiro romance: O único final feliz para uma história de amor é um acidente (ed. Companhia das Letras), que sairá para o ano na portuguesa editorial Caminho e nasceu do projecto Amores Expressos, que enviou escritores brasileiros para diversas cidades que os inspirassem a escrever ficções de amor. Ele foi o coordenador editorial do projecto.

O escritor que nasceu em 1978, no Rio de Janeiro, é representativo da nova geração de escritores brasileiros que surgiu por causa da Internet. Criou o seu primeiro blogue em 1999, e enquanto escrevia aquele que viria a ser o seu primeiro romance, Corpo presente (2003), fez na Internet um diário desse processo de escrita. Mandou um excerto para a revista brasileira Ficções (que publica novatos e consagrados) e um editor reparou nele. Tinha 25 anos quando o seu primeiro romance foi para as livrarias. Na altura, entre outros, o escritor brasileiro Marçal Aquino disse que “fazia tempo” que uma narrativa não o impressionava tanto; o escritor Marcelo Rubens Paiva acrescentou que o livro era “deslumbrante” e, à BBC, Chico Buarque disse que havia um autor novo de que gostava muito. O engraçado é que ainda antes de ser um escritor publicado, Cuenca, licenciado em Economia, já tinha leitores. E ao longo dos anos tem sido perito nesse conceito do “autor amplificado”, aquele que está presente em todas as redes sociais e tem uma constante ligação com os seus leitores e percorre o país e o mundo em festivais literários. Ele sabe que, nos dias que correm, aproximar o leitor da figura do escritor pode ser muito importante para vender literatura. Mas também sabe que, às vezes, essa aproximação pode tornar-se um inferno. Foi cronista dos jornais A Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil e Globo (até ao Verão passado) e actualmente é um dos comentadores do programa Estúdio 1, da Globo News (canal de notícias 24 horas). Juntamente com Cecilia Gianetti e Michel Melamed, João Paulo Cuenca foi um dos argumentistas da série Afinal, o Que Querem as Mulheres?, de Luiz Fernando Carvalho, que terá estreia a 11 de Novembro na Rede Globo. É um rapaz optimista em relação ao Brasil, que em dez anos passou de país cronicamente subdesenvolvido a potência imperialista da América do Sul, afirma. “Não só isso: hoje há um circuito muito mais vivo de ideias, artes plásticas, música e literatura. Com a vantagem de que somos leves e aceleramos rápido: temos só cinco séculos de história por trás e uma civilização para construir.” Acredita que a sua geração pode fazer “tudo” pelo país: “Já que justamente temos muito espaço – não para conquistar, mas para criar.” Isabel Coutinho

2. Alexandre Herchcovitch
A moda que evita estereótipos tropicais e sensuais

Em tempo de eleições e pré-campanha, os candidatos beijam crianças, escalam favelas, prometem o mundo. Mas no Novo Brasil de Lula da Silva, a prova de que a moda brasileira importa ao seu governo e à comunicação de um país em expansão económica foi dada pela visita dos candidatos presidenciais, em Junho, à São Paulo Fashion Week, onde, mais do que ocupar lugares na primeira fila dos desfiles, se expuseram à conversa, receberam perguntas e debateram a face design do Brasil. E se o mais jovem valor da moda brasileira é Pedro Lourenço, o adolescente que mostra as suas colecções na Semana de Moda de Paris, e se a moda brasileira são os corpos solares de Gisele Bündchen ou Alessandra Ambrósio, a sua linhagem é forte. Pedro Lourenço é herdeiro dos pais igualmente talentosos Reinaldo Lourenço e Glória Coelho – que, tal como Isabela Capeto, já esteve na ModaLisboa –, mas o nome que mais sucesso teve nos últimos 15 anos a nível internacional foi mesmo o de Alexandre Herchcovitch. Foi o único criador brasileiro a ser reconhecido pela Câmara Sindical de Moda de Paris, a autoridade máxima do sector, e desfilou nas passerelles de referência de Paris, Nova Iorque (2005) e Londres, cidades onde tem a sua marca pessoal à venda. Desdobrou-se em várias linhas, tem como principal mercado, depois do Brasil, o Japão, e deixou lastro.

Ou seja, é daqueles criadores que imprimiram a sua marca na rua, numa certa juventude brasileira que, nos anos 1990, usava os seus estampados com caveiras como símbolo de Brasil e rebelião fashion. Hoje, mantém-se baseado em São Paulo, a cidade onde nasceu em 1971.

Cresceu inspirado pela mãe, tem ascendência judia e, apesar de não ter uma família praticante, estudou num colégio judeu ortodoxo. “A minha moda casa muito com o estilo de São Paulo, mas eu não crio para São Paulo – São Paulo ajudou-me a ser e fazer uma roupa que pode ser vestida no mundo inteiro”, explicava. Foi em 1991, quando começava a cobrir e acompanhar a vida nocturna de São Paulo, que a jornalista de moda brasileira Erika Palomino conheceu Alexandre Herchcovitch. Nessa altura ele era uma figura-chave do underground da cidade e Palomino, que agora se ocupa do jornal da São Paulo Fashion Week e tem a sua própria publicação online, notou que havia ali algo mais do que transgressão. Foi “quando percebi a sua consistência e seriedade, disciplina e senso de marketing, aliados à condição técnica e de execução. A sua ambição também foi essencial para isso [para dar o salto internacional]”, explica a cronista ao P2. Hoje é o director criativo da marca de beachwear de alta gama Rosa Chá (com ponto de venda em Portugal) e mantém a sua própria marca, com a qual voltou às icónicas caveiras na colecção para este Outono/Inverno 2010. Foi juiz no concurso televisivo Brazil’s Next Top Model e, no início deste século, tinha medo de se “tornar escravo do Brasil” – mas depois abraçou, como diz no seu site, a sua “brasilidade”. Hoje tem um estilo “transgressor, arrojado, sempre se desafiando e nunca se acomodando no sucesso e em fórmulas”, diz Erika Palomino, que lhe elogia a alfaiataria e a iconoclastia.

Um dos nomes maiores da moda brasileira, Herchcovitch deve, opina ainda a cronista, acompanhar a profissionalização crescente da moda brasileira, que tenta hoje “entender a vocação do que faz”: “Não sei se acredito em ‘moda brasileira’, mas em moda feita no Brasil. O mercado é hoje global e todos olham para o Brasil em busca de inspiração e alegria. Evito estereótipos tropicais e sensuais. O forte do Brasil deve ser o corpo brasileiro, o jeito de usar, o olhar pós-moderno e misturado, certa informalidade e diferenciação por meio do design e da tecnologia têxtil com a manufactura e a simplicidade.” Joana Amaral Cardoso

3. Christiane Jahaty
Um teatro que esteja vivo

Para Christiane Jahaty, 42 anos, o importante não é tanto o que se diz, mas como se diz. Actriz, encenadora, directora da companhia de teatro Vértice, dramaturga e realizadora, ela é um dos melhores exemplos do teatro brasileiro que não conhecemos mas que, como ela mesma diz, “perguntam como se pode fazer teatro, ou arte, num país como este”.

“Nos últimos anos tenho experimentado as zonas de fronteira do próprio teatro. Interessa-me perguntar o que é que é teatro, quando deixa de ser e quando volta a ser.” Dela dizem que tem sido capaz de ir para lá da retórica da pergunta e, efectivamente, propor uma reflexão sobre o próprio fazer teatral. “Como é que fazemos com que o receptor seja um colaborador activo e não apenas um agente passivo”, pergunta a encenadora que em 2003 dirigiu uma adaptação de Memorial do Convento, de José Saramago, com dramaturgia de José Sanchis Sinisterra, bem recebida pela crítica, que destacou precisamente a capacidade de ir para lá da interacção. “A pesquisa sobre o espaço é um caminho, não é um fim. Quando falo de reactivação do papel do espectador falo, na verdade, de algo mais profundo. É um trabalho a partir da inteligência do espectador, criando espaços para que possa haver uma partilha e uma interacção.”

O seu trabalho tem vivido na fronteira da realidade e da ficção, com os bastidores a conviverem com a dramaturgia, num gesto que assinala a “não definição que caracteriza o próprio teatro”. “O teatro é repetição, mas o objectivo é que actores e espectadores tenham uma relação de presença no momento em que se encontram.”

Ao longo dos anos, Christiane Jahaty tem insistido num “jogo com a relação espacial, mesmo que seja frontal. A simultaneidade de acções muda essa percepção porque o espectador é obrigado a seleccionar o seu conteúdo”.

Esta obrigação é, na verdade, uma oportunidade, acredita a encenadora, para pensar o próprio país, porque há um lado de acontecimento que quer sublinhar no seu trabalho. “Vê-se a arte da maneira como se vê a vida. Há uma certa imobilidade na geração de que faço parte e isso faz-me pensar como é que posso intervir”, diz. “Quando achamos que o que estamos a ver só acontece uma vez, isso muda o olhar, torna-nos mais presentes.” Tiago Bartolomeu Costa

4. Fernando Meirelles

O cineasta global

Se fosse de bom-tom rever e modificar as grandes frases escritas pelos génios da literatura, o cineasta brasileiro Fernando Meirelles podia perfeitamente fazer um pequeno acrescento à célebre epígrafe que abre o romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Ficaria algo como: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Se consegues reparar, filma.”

A frase de Saramago, embora adulterada, é uma boa síntese de uma carreira que explodiu internacionalmente em 2002, quando Meirelles realizou Cidade de Deus, a partir do romance homónimo de Paulo Lins. O filme foi nomeado para quatro Óscares e abriu o caminho à afirmação do paulista de 55 anos como um cineasta global. Adaptou, depois, O Fiel Jardineiro, de John le Carré, e, precisamente, o Ensaio sobre a Cegueira, ambos rodados em inglês e com meios hollywoodescos (embora sem dinheiro das grandes produtoras norte-americanas), incluindo a participação de actores como Ralph Fiennes, Mark Ruffalo, Julianne Moore, Danny Glover, Gael García Bernal ou Rachel Weisz, que ganhou a estatueta para a melhor actriz secundária pelo desempenho em O Fiel Jardineiro.

Olhando para estes três filmes, que compõem o corpus artístico fundamental de Fernando Meirelles, facilmente se constatam três traços que lhes são comuns e que marcam o sucesso do realizador: a apropriação da literatura como ponto de partida para a ficção cinematográfica; um olhar capaz de criar um objecto fílmico que consegue ser visualmente interessante e emancipado relativamente ao romance de origem, sem, todavia, o trair; e a escolha de temas cuja adopção implica um posicionamento de reflexão e denúncia social – a violência urbana e o tráfico de droga em Cidade de Deus, a pobreza de África, a hipocrisia humanitária e os testes ilegais de medicamentos em O Fiel Jardineiro e a grande metáfora de cegueira civilizacional presente em Ensaio sobre a Cegueira.

As lágrimas de José Saramago no final da sessão de visionamento do filme constituíram, de algum modo, um reconhecimento daqueles três predicados, mas também da perseverança que permitiu a Fernando Meirelles trabalhar incansavelmente até chegar ao sobreiluminado resultado final. Após nove montagens falhadas, a décima versão do Ensaio teve honras de abertura do Festival de Cannes em 2008.

Daí que, mesmo sem a consagração que obtiveram os seus compatriotas José Padilha e Walter Salles, ambos vencedores do Urso do Festival de Berlim (com Tropa de Elite e Central do Brasil, respectivamente), Fernando Meirelles tenha acabado por assumir o papel de principal embaixador mundial da renascida cinematografia brasileira. O estatuto que adquiriu, porém, teve um preço que só o tempo dirá se não foi demasiado alto: depois de Cidade de Deus, Meirelles não voltou a conseguir aproximar-se do caminho que, em tempos, chegou a identificar como sendo a carreira ideal, a de Pedro Almodóvar, que conseguiu triunfar fazendo filmes sem orçamentos milionários, intrinsecamente espanhóis e destinados a plateias de todo o mundo. Jorge Marmelo

5. Nizan Guanaes
Comunicação é com ele

O nome Nizan é, garante o próprio, “terrível para pedir pizza e táxi pelo telefone”. Mas tem a vantagem de ser “um nome que ninguém esquece” e nos meios brasileiros da publicidade, marketing, branding, comunicação empresarial e consultoria política toda a gente conhece o dele, este: Nizan Guanaes.

O baiano de 52 anos, fundador e chairman do Grupo ABC, “o maior grupo de propaganda” do Brasil e 20.º na lista dos maiores conglomerados de comunicação do mundo, é o vencedor de dezenas de prémios internacionais de publicidade e o estratega por detrás da eleição (e reeleição) de prefeitos, governadores, senadores e do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC).

“Não sei dizer não ao Fernando Henrique. Estou doando o meu tempo e talento para algo em que acredito”, explicou Nizan ao jornalista Gilberto Dimenstein, que escreveu sobre os “amplos poderes” do “marqueteiro”, como se diz na gíria, enquanto durou a presidência de FHC. “Ele cuida informalmente da imagem do Presidente; vai pelo menos dois dias por semana para Brasília”, explicava.

O seu trabalho, comparava, era semelhante ao de um cirurgião plástico encarregue de retocar o rosto da supermodelo Cindy Crawford: “Se tudo desse certo, poucos reconheceriam os seus méritos. Mas se desse errado, ele seria o vilão, responsável por macular a beleza da musa norte-americana.”

Desta feita, porém, Nizan escolheu ficar de fora da disputa eleitoral. Ainda se especulou que o “marqueteiro” reeditasse a sua colaboração com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no qual ele diz acreditar genuinamente. O seu grande rival, Duda Mendonça, ícone do marketing político do Brasil, também tinha prometido ficar à margem, mas acabou por representar uma série de candidatos. E Guanaes até já tinha trabalhado com José Serra, da primeira vez que o tucano tentou chegar ao Planalto.

Mas enquanto os seus concorrentes se digladiavam em busca das melhores “contas”, Nizan ocupava-se com outros assuntos, noutras paragens – ele esteve em Nova Iorque, para a Clinton Global Initiative do antigo Presidente dos Estados Unidos ou a gala da Brasil Foundation; e em Chengdu, para a cimeira empresarial China-América Latina, onde foi um dos oradores convidados. O seu papel, definiu ao Financial Times, é o de um embaixador: “Eu quero promover o Brasil e transformar a economia do país. Já somos uma economia emergente, agora temos de ser uma cultura emergente.”

“No mundo existem aqueles que choram e aqueles que vendem lenços, e eu sou dos que vendem lenços”, costuma dizer nas suas palestras. O seu olho para o negócio é genético, justifica: filho de uma engenheira de origem libanesa, ele garante beneficiar de quatro mil anos de tradição mercantil. A sua mercadoria são as ideias, os desejos. O negócio de Nizan é a comunicação. “É um negócio permanente, inspirador e extremamente rentável”, garantiu à revista Meeting & Negócios. Rita Siza

6. Ernesto Neto
O artista que apela aos sentidos

O artista plástico queria que os londrinos tivessem a sensação do que é ser carioca. Ele, que trabalha e vive no Rio de Janeiro, onde nasceu em 1964, sugeriu este Verão que os visitantes da Hayward Gallery, em Londres, vissem a sua exposição de biquíni. “Acho que ser carioca envolve uma interactividade social muito especial”, disse numa entrevista a propósito da mostra The Edges of the World, que conseguiu levar 60 mil visitantes à galeria do Southbank Centre. Por isso, em mais uma etapa da sua internacionalização, Neto construiu uma piscina no terraço e os londrinos chegaram mesmo com os seus fatos-de-banho. Sentir uma cidade com ou sem sapatos faz toda a diferença, argumentou.

O seu trabalho faz um constante apelo aos sentidos do espectador, que é convidado a percorrer, sentir, cheirar e mesmo integrar as esculturas e instalações por si criadas, trabalhos muitas vezes com uma escala assinalável e que dialogam com a arquitectura envolvente. Textura, peso, cor, temperatura, alegria, tristeza, sensualidade, brincadeira, são termos que usa para descrever o que faz.

É na continuidade da tradição do neoconcretismo de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, passando ainda pela herança de José Resende, de Cildo Meireles e de Tunga, que a obra do carioca tem vindo a afirmar-se no panorama internacional – os seus trabalhos fazem parte das colecções do MoMA em Nova Iorque, do Centro Pompidou em Paris, do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia em Madrid e também da Colecção Berardo em Lisboa. As metáforas relacionadas com o corpo humano são recorrentes nas suas criações, sendo este um dos motivos centrais das investigações estéticas por si desenvolvidas. “Viver numa estrutura urbana como Londres, Paris ou São Paulo altera significativamente o nosso modus operandi, o nosso ser, a nossa maneira. E isto é um happening cultural, mas também um happening físico. Este urbanismo que está à nossa volta, por muito cultura que seja e represente, transforma-se num habitat. A cultura torna-se a nossa natureza”, disse na mesma entrevista na revista online Studio International.

Há ainda outras questões de ordem formal e conceptual que Neto procura abordar nas suas obras, tais como as relacionadas com o peso, a resistência e a elasticidade dos materiais usados – a lycra ou o algodão, por exemplo –, ou aquelas focadas na cor enquanto elemento constitutivo de um espaço passível de ser percorrido por um espectador.

As suas criações proliferam pelo espaço, ficam suspensas ou agarram-se ao chão, num permanente desafio à gravidade, convocando memórias, afectos e medos.

Numa permanente tensão entre a luz e objectos com características orgânicas, o trabalho do artista revela uma sensorialidade típica de alguma da arte brasileira produzida nas últimas décadas. Óscar Faria

7. Bruno Beltrão
Um coreógrafo no futuro

Quando Bruno Beltrão começou a apresentar os seus espectáculos fora do Brasil, a grande surpresa para o público e a crítica, que imediatamente o coroou como um dos expoentes de uma nova forma de interpretar o corpo contemporâneo, não estava somente na relação entre as danças urbanas e os códigos formais da coreografia. O que lhe era apontado era um discurso capaz de suplantar modelos deterministas de relação entre corpo e objecto, entre acção e entre representação e presença.

Aos 31 anos, o coreógrafo brasileiro, rosto principal do Grupo de Dança de Rua de Niterói, do outro lado da baía de Guanabara, tornou-se não tanto um coreógrafo brasileiro mas um dos principais elementos de uma nova filosofia sobre a dança. O cruzamento que propõe entre o hip-hop e os cânones clássicos, sugerindo uma nova geografia territorial e disciplinar, levaram-no aos palcos dos principais teatros e festivais europeus, que, fascinados pela descoberta, não apenas o distinguem – foi considerado coreógrafo do ano em 2006 pelo conjunto de críticos internacionais da revista alemã Ballettanz – como o co-produzem com regularidade. A qualidade maior do seu trabalho está no modo como, combinando um trabalho centrado no corpo enquanto elemento activo no interior de uma coreografia, consegue expor um movimento que nunca se encerra em si mesmo, antes o amplia e o torna, efectivamente, o centro da acção.

Em Portugal vimos Eu e o meu coreógrafo no 63 e Do popping ao pop ou vice-versa (ambos Danças na Cidade, 2005), Too legit to quit (Serralves, 2006), H2 (Alkantara Festival/CCB, 2006) e H3 (Alkantara Festival/Teatros São João e São Luiz, 2010), exemplos de pesquisa que tem evoluído em direcção a uma aproximação não apenas entre a forma e o conteúdo mas, sobretudo, entre o olhar de quem assiste e o reconhecimento da dança como uma disciplina múltipla e mutante.Tiago Bartolomeu Costa

8. Una Arquitetos
Direito ao lugar

Para o escritório paulista Una Arquitetos, fundado em 1996, o exercício profissional é uma forma de militância política e a metrópole – mais exactamente São Paulo – é o lugar onde esta se manifesta. É assim desde os tempos da escola quando, no início dos anos 90 do século XX, frequentam a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. No país vive-se um momento de consolidação democrática após o movimento das Diretas Já que, entre 1983 e 1984, reclamou a eleição directa do Presidente da República. Cristiane Muniz, Fernando Felippe Viégas, Fábio Rago Valentim e Fernanda Barbara criam então, com outros estudantes, a revista Caramelo em defesa da cultura moderna e de profissionais que o período da ditadura militar (1964-1985) desacreditara, como Paulo Mendes da Rocha (mais tarde vencedor do mais importante prémio internacional de arquitectura, o Pritzker, em 2006). O edifício da escola com a sua praça central coberta, desenhado por João Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi e construído durante a década de 1960, proporciona na época o refúgio ideal para o lançamento de um debate em torno da cidade. São Paulo funciona como um laboratório de reflexão para as novas gerações que aqui estudam. Discutem-se todos os aspectos urbanos, desde a cultura da cidade, a rede de transportes, a habitação ou os equipamentos públicos. Quando em 2006 lançam, com mais cinco escritórios paulistas, a exposição Coletivo, procuram reviver esse fórum de discussão que a escola representara. A mostra constrói simultaneamente um discurso de intervenção urbana e uma posição geracional e prova que existe espaço para fazer propostas.

É em São Paulo que localizam as suas principais obras. Marcando o carácter que identificaria posteriormente os projectos do escritório, vencem em 1997 o concurso de preservação da Agência Central dos Correios no Vale do Anhangabaú. A proposta parte da abertura do piso térreo à circulação livre do público. Ao entender o edifício como continuidade do chão da cidade, os arquitectos do Una dão sequência à tradição da arquitectura paulista. Esta é representada pela exploração do betão nas suas potencialidades estrutural e plástica e por coberturas expressivas, que simbolicamente exprimem o espírito colectivo e de convivencialidade que se desenrola no interior destes edifícios. A escola de Campinas, diversas vezes premiada, é um dos edifícios dos Una mais referenciados internacionalmente e o que melhor exprime esta ideia.

Os temas debatidos enquanto jovens estudantes animam ainda hoje o escritório. No Museu Berardo, apresentam o projecto de habitação em Caranguejo Tabaiares, destinado a uma favela nas margens do rio Capibaribe, no Recife, projecto que reflecte algumas abordagens que caracterizam outros trabalhos, designadamente a importância da água no desenho urbano e da infra-estrutura na transformação de assentamentos precários em cidade consolidada. Mas também revelam posições sociais, que recordam lutas antigas, como o direito ao lugar. Ana Vaz Milheiro

9. Cláudio Valladares Pádua
Na floresta, à procura do mico-leão-preto

Uma decisão ousada, um diminuto macaco e anos de entrega a uma causa fizeram de Cláudio Valladares Pádua um dos nomes mais respeitados da conservação da natureza no Brasil. A corajosa resolução foi tomada no final dos anos 1970, quando Cláudio Pádua trilhava uma carreira de sucesso como gestor numa empresa farmacêutica. Um dia, chegou a casa e declarou à mulher, Suzana, que não era aquilo o que queria. A gestão de empresas foi substituída pela biologia e hoje Cláudio e Suzana estão à frente do Instituto de Pesquisas Ecológicas, um organismo fundado em 1992, que tem projectos de conservação da natureza em vários estados do Brasil e cujo nome está associado à preservação de um dos primatas mais ameaçados de extinção no mundo.

No centro dessa reviravolta está o pequeno mico-leão-preto – que Cláudio Pádua decidira estudar durante o seu doutoramento. Este macaco, com cerca de 30 centímetros, era considerado extinto, quando foi redescoberto, em 1971, pelo primatologista Adelmar Coimbra-Filho.

Cláudio Pádua, que conhecera Coimbra-Filho na casa de um amigo comum, seguiu-lhe os passos e fixou-se na região do Pontal do Paranapanema, uma das mais pobres do interior do estado de São Paulo, embrenhando-se diariamente nas florestas remanescentes do Parque Estadual do Morro do Diabo, em busca do mico-leão-preto. O seu empenho extravasou o interesse meramente académico. E ali nasceu um bem-sucedido projecto de conservação.

A chave do êxito está no envolvimento da comunidade local, em parte constituída por famílias ligadas ao Movimento dos Sem Terra e ali fixadas pelo programa estatal de reforma agrária. A própria população está envolvida na plantação e manutenção de manchas florestais. Um dos incentivos é o programa Café com Floresta, no qual as famílias recebem mudas de café para cultivar junto com as novas zonas florestais.

Com a ajuda do casal Pádua, a conservação dos valores naturais daquela área protegida passou a fazer sentido para quem ali vivia. “Eles conseguiram mudar a predisposição daquela população em relação ao parque”, afirma a jornalista brasileira Liana John, que conheceu Cláudio Pádua logo no princípio do projecto, no final dos anos 1980.

O mico-leão-preto, que estava criticamente ameaçado de extinção, recuperou-se. Nos anos 1970, havia cerca de uma centena de macacos daquela espécie. Nos anos 1980, eram 300. Agora, são cerca de 1200.

A experiência no Pontal do Paranapanema conduziu à criação do Instituto de Pesquisas Ecológicas, que hoje emprega uma centena de pessoas e tem cerca de 40 projectos em todo o Brasil. O instituto soma um longo palmarés de prémios, incluindo vários internacionais. Cláudio Pádua, a nível pessoal, também acumula galardões, incluindo o prémio Whitley, atribuído por uma fundação britânica e um dos mais importantes, a nível internacional, na área ambiental.

Largar uma boa carreira profissional aos 32 anos para mergulhar no desconhecido tem o seu lado traumático. “Não é uma experiência que todo mundo deva fazer”, avisa Cláudio Pádua. No princípio, até o casamento esteve em risco. Hoje o casal funciona como uma dupla perfeita para projectos como os que o instituto desenvolve. “Ela tem o lado social, eu tenho o científico”, diz o investigador.

Hoje, com 60 anos, Cláudio Pádua reparte o seu dia-a-dia entre Brasília, onde vive e é professor universitário, e a sede do seu instituto, no interior de São Paulo. Olhando para trás, tem dificuldade em imaginar o que seria da sua vida se tivesse prosseguido a carreira de gestor. “Acho que ia ser bem-sucedido”, avalia. “O que não ia ser é feliz.” Ricardo Garcia

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