Badawi, que está "cheio de dores e mal de saúde", vai levar mais 50 chicotadas

Amnistia Internacional denuncia inacção do Ocidente no caso do blogger que defendeu o secularismo. ONU lembra que Arábia Saudita ractificou convenção contra a tortura.

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Ensaf Haidar (ao centro), a mulher do blogger, durante uma vigília pela sua libertação em Montreal, no Canadá AFP

É provável que a cena se repita. Que um polícia se aproxime dele e que lhe dê 50 chicotadas. Só que, desta vez, as pernas e as costas de Raif Badawi já estão feridas — por isso, a mulher, Ensaf Haidar, disse à Amnistia Internacional que tem medo que ele não aguente a segunda ronda do castigo de mil chicotadas a que foi condenado por ter um blogue que falava de religião, de secularismo e de separação de poderes na Arábia Saudita.

Na primeira vez, as chicotadas em praça pública foram dadas junto à mesquita de Jidá, a cidade natal de Badawi, depois das orações do meio-dia. A seguir, foi levado de volta para a cadeia — também foi condenado a dez anos de prisão. Nesta sexta-feira, o castigo está marcado para o mesmo lugar.

Da primeira vez, Badawi levantou a cabeça e aguentou, em silêncio, as chicotadas. "Raif disse-me que tem muitas dores desde que foi chicoteado e que não está bem de saúde", contou à Amnistia Internacional a mulher do blogger, que tem medo que o marido não resista. E se suportar estas, aguentará as próximas? — as mil chicotadas foram divididas em grupos de 50, a serem dadas durante 20 sexta-feiras.

"A pressão internacional é crucial; acredito que se continuarmos a apoiá-lo, podemos ter sucesso", pediu Ensaf Haidar, que desde que o marido foi condenado vive com os três filhos no Canadá.

Raif Badawi, de 31 anos, é um escritor saudita que fundou o blogue Rede Liberal Saudita. Em Junho de 2012, foi preso e acusado de insulto ao islão, não obediência ao monarca e apostasia (renuncia deliberada da religião). A última acusação, que lhe valia a pena de morte, foi retirada, e foi condenado a 15 anos de prisão (a cumprir apenas dez), mil chicotadas em público e uma multa no valor de 226 mil euros. O seu advogado, o especialista em defesa dos direitos humanos Waleed Abu al-Khair, disse à Amnistia Internacional que na segunda-feira o tribunal o avisou que a pena, afinal, terá que ser cumprida na íntegra — os 15 anos — porque Badawi se recusa a pedir perdão pelas "ofensas".

A sentença foi condenada por alguns países e instituições como os Estados Unidos e a União Europeia. Sem sucesso. E, para surpresa de alguns sauditas mais liberais, a primeira flagelação aconteceu a 9 de Janeiro, dois dias depois dos atentados, motivados pelo extremismo, em Paris. "Muita gente ficou surpreendida que isto tivesse acontecido logo a seguir à matança de Paris. Não foi uma boa prática de relações públicas por parte do reino", disse uma fonte saudita ao jornal The Guardian. "A teoria [que corre] é que o governo quer passar aos radicais a mensagem de que irá atrás de toda a gente, não apenas dos extremistas religiosos", disse a fonte, sob anonimato.

A Rede Liberal Saudita — que foi encerrada pelas autoridades; na Arábia Saudita existe uma polícia religiosa, a Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício — foi criada com o objectivo de ser um fórum de debate social e político. No dia 28 de Setembro de 2010, Badawi escreveu que "o secularismo é o mais importante refúgio de um cidadão de qualquer país" — questionava, de uma só vez, os dois pilares que regem a vida deste país que é uma monarquia absoluta islâmica.

"Como outros liberais sauditas, Badawi pensa que o problema reside no facto de a religião controlar a família real e os súbditos", disse, também ao Guardian, o historiador saudita que vive em Londres, Madawi al-Rasheed. "Ele não vê que tanto os religiosos como a família real formam um só coro de defesa dos direitos uns dos outros".

Badawi cometeu outros "pecados" ao expressar opiniões contrárias às oficiais. Por exemplo, ao elogiar as manifestações na Praça Tahrir, no Egipto, em 2011, quando o governo saudita era favorável a que Hosni Mubarak ficasse no poder. O blogger também usava o humor: fez troça de um líder religioso que defendeu, na televisão, a punição dos astrónomos por, com o seu trabalho, criarem dúvidas sobre a lei islâmica, a sharia.

Para a Amnistia Internacional, como para a mulher de Badawi, a aplicação da segunda parte do castigo das chicotadas significa que as autoridades — políticas, judiciais, religiosas — estão inamovíveis quanto à possibilidade de um perdão. A Amnistia pediu ao Governo britânico que volte a pressionar Riad, que foi imune a todos os protestos anteriores. Mas, desde que Raif Badawi levou a primeira chicotada, não houve qualquer movimentação diplomática junto do governo que controla a segunda maior reserva de petróleo, acusa a AI. "[O primeiro-ministro britânico] celebrou, e bem, a liberdade de expressão em Paris e em Londres, mas parece ter perdido a sua capacidade de argumentação para condenar publicamente as autoridades de Riad", disse a directora da Amnistia no Reino Unido, Kate Allen.

Numa última tentativa para impedir mais chicotadas, o alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, o jordano Zeid Ra’ad Al Hussein, pediu nesta quinta-feira à Arábia Saudita para perdoar a Raif Badawi. "Peço ao rei [Abdullah] que exerça o seu poder e trave a flagelação pública e perdoe Badawi, e que reveja com urgência este tipo de sanção extremamente severa". Num comunicado, Al Hussein lembra que a flagelação é uma "punição proibida pelo direito internacional e pela Convenção Contra a Tortura, que a Arábia Saudita ratificou".
 

   

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