Auschwitz: lembrar para quê?

Parafraseando Imre Kertész, “o verdadeiro problema de Auschwitz é a sua própria existência e, mesmo com a melhor vontade do mundo, ou com a pior, nada podemos fazer para mudar isso”.

Hoje, dia 27 de Janeiro, comemora-se o Dia Internacional de Memória das Vítimas do Holocausto, instituído pelas Nações Unidas em 2005. A escolha do dia não surge por acaso: foi precisamente na tarde de 27 de Janeiro de 1945 que o Exército Soviético vitorioso chega a Auschwitz-Birkenau, o maior e o mais mortífero centro de extermínio do III Reich.

Auschwitz foi o primeiro campo de concentração a ser libertado pelos Aliados e o único onde a máquina de morte funcionou a todo o vapor até ao final de 1944. É sobretudo entre Maio de Outubro desse ano, que Auschwitz-Birkenau toma as proporções que o tornam no símbolo de destruição humana, com o gaseamento logo à chegada ao campo de meio milhão de judeus húngaros, homens, mulheres e crianças.

A 7 de Outubro tem lugar a revolta do sonderkommando– o comando especial encarregado da incineração nos fornos crematórios dos corpos gaseados. Conseguem fazer explodir um dos crematórios, matar alguns SS e ferir outros tantos. Em contrapartida serão mortos cerca de 450 prisioneiros, entre os quais, as quatro mulheres graças a quem os explosivos chegaram às mãos dos revoltosos. Apesar de apenas ter conseguido interromper o processo de destruição humana durante 24h, esta foi a única revolta armada nos cinco anos de existência do campo de Auschwitz.

Em Novembro do mesmo ano de 1944, Himmler considera que a “questão judaica” está resolvida e dá ordem de destruição das instalações de extermínio. Os bombardeamentos aliados sucedem-se, o Exército Vermelho está às portas. A 17 de Janeiro, tem lugar a última chamada de prisioneiros. É também nesse dia que é decidida a evacuação dos detidos. Serão 58 mil a fazer 50 km a pé para ocidente no que ficou conhecido como as Marchas da Morte pelo facto das estradas ficarem cobertas de cadáveres, homens e mulheres vencidos pela exaustão ou abatidos a tiro. O objectivo era encaminhar os prisioneiros para os campos na Alemanha e assassiná-los como derradeiras testemunhas do mais hediondo dos crimes. Em Auschwitz, ficam apenas os doentes ou incapazes de andar e os que se escondem na expectativa da chegada dos soviéticos.

A 20 de Janeiro chega a ordem de liquidação dos últimos prisioneiros do campo – mais 200 mulheres judias são assim assassinadas. Entretanto, as SS preparam-se para partir mas antes queimam ficheiros e destroem os barracões que albergavam anteriormente dois dos crematórios; Mengele “o anjo da morte” recupera as notas sobre as suas experiências “científicas “com gémeos ciganos e judeus, a empresa alemã IG Farben a quem pertence o campo de trabalho escravo de Monovitz, dependente de Auschwitz, destrói os seus dossiers. A 23 de Janeiro os alemães incendeiam vinte e nove dos trinta e cinco armazéns – denominados na gíria do campo, de “Canadá” por comparação com o paraíso… , repletos de roupa e bens roubados às vítimas. E finalmente à 1h da manhã do dia 27, antes da fuga definitiva, os guardas SS fazem explodir o único crematório mantido até ao fim para apagar os vestígios dos derradeiros cadáveres.

À chegada ao campo, nessa mesma tarde, os soviéticos são recebidos por cerca de sete mil prisioneiros ainda em vida, deixados para trás pelos alemães em fuga, e por centenas de cadáveres que jazem no chão. Conta o ex-prisioneiro Primo Levi, que os soldados soviéticos “não saudavam, não sorriam; pareciam oprimidos, não só pela piedade, mas por uma certa confusa discrição, que lhes selava a boca e prendia os olhos ao cenário fúnebre. Era a mesma vergonha bem nossa conhecida (…) a vergonha que os alemães não conheceram, a que o justo sente perante o pecado cometido por outrem…”

Nos seis armazéns de roupa e bens que os alemães não tiveram tempo de destruir, os soldados soviéticos deparam-se com perto de dois milhões de peças de vestuário e sapatos de homem, mulher e criança e, na fábrica de curtumes, com sete toneladas de cabelos de mulher - testemunhos mudos, mas eloquentes de um crime sem nome, organizado pelo Estado nazi e levado a cabo com a cumplicidade ou indiferença de toda uma nação.

Uma das raríssimas vozes de protesto público veiode um padre católico, Bernhard Lichtenberg, que em serviços abertos ao público orava pelas vítimas judias na Catedral Santa-Hedwige de Berlim. Por defender que a posição do Estado nacional-socialista sobre a questão judaica era contrária ao mandamento cristão de amar o seu próximo, foi condenado e deportado para o campo de concentração de Dachau. Debilitado por anos de perseguição e combate solitário, acabou por morrer antes mesmo do seu transporte.

Em Auschwitz-Birkenau foram assassinados 1,1 milhão de judeus, 70 a 75 mil polacos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos, 21 mil ciganos e cerca de 10 mil prisioneiros de origem diversa. Mas estes números, relativos apenas ao complexo de Auschwitz-Birkenau, estão longe de contar o imenso sofrimento de seres humanos a quem, antes da morte com o gás, a tiro ou na mesa de operações, despojaram de tudo aquilo que fazia a sua humanidade: família, pátria, língua, nome, integridade física e psicológica…

Para quê lembrar tudo isto, para quê um Dia de Memória? Será que somos capazes de tirar algum ensinamento de tudo isto? Sinceramente, não sei. Mas sei que embora a memória seja falível, o conhecimento é indispensável. Não para termos “pena” das vítimas, mas para entendermos os sinais da tragédia nas nossas sociedades actuais. Por isso, são de saudar as inúmeras iniciativas de escolas, da Assembleia da República, o flashmob de homossexuais em Lisboa, lembrando o sofrimento específico deste grupo durante o Holocausto, e tantas outras. De uma forma ou de outra, estas “co-memorações” despertam para a necessidade de saber e de conhecer. Parafraseando Imre Kertész no seu discurso de atribuição do prémio Nobel em 2002: “O problema de Auschwitz não é o de saber se devemos manter a sua memória ou metê-la numa gaveta da História. O verdadeiro problema de Auschwitz é a sua própria existência e, mesmo com a melhor vontade do mundo, ou com a pior, nada podemos fazer para mudar isso”.

Fundadora da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos

(esther.mucznik@netcabo.pt)
 
 
 
 

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