As várias guerras de Ahmad e Bilal

O ataque em Orlando acendeu discussões sobre o islamismo e a homofobia. É difícil aferir com rigor o que diz o Corão sobre a homossexualide. Dois muçulmanos gays a viver em Portugal contam-nos a sua experiência.

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A dupla discriminação de quem é gay e muçulmano Enric Vives Rubio

Ahmad. Pestanas longas, olhos negros, sobrancelhas carregadas, sorriso alegre e quase infantil. Um brinco, um anel, uma pulseira.

Não faz por esconder que é homossexual – não aqui, em Lisboa, onde vive há um mês. Tem estatuto de refugiado por perseguição sexual. Mas a sua guerra não é uma, são duas. Primeiro fugiu das bombas em Damasco, depois fugiu da homofobia em Istambul. Agora sente-se em casa.

Tem 20 anos e a alegria de quando se tem 20 anos. Ninguém adivinharia a sua história. Mas agora que há calor e ele usa t-shirts, talvez haja quem lhe pergunte pelas marcas redondas que tem no braço, mesmo antes do ombro. Três bolas cor-de-rosa, numa pele morena. Foi um ataque quando ainda vivia na Turquia: viram-no a sair de um bar gay, seguiram-no e agrediram-no. Nada de pouco habitual naquele país. Se fosse na Síria poderia ser ainda pior: “Basta três testemunhas e é o fim. O Governo sírio não nos mata – ou não matava, antes da guerra, agora mata toda a gente – mas punha-nos seis anos na cadeia.”

Em todo o caso, a sua agressão começou mesmo em casa, quando o pai descobriu que estava a namorar com um rapaz. “Bateu-me durante meia hora, como se estivesse a fazer boxe. Eu dizia-lhe 'desculpa, desculpa', mas nem sabia porque é que ele estava a fazer aquilo. Até que ele começou a gritar: 'És gay? És maluco? Aqui em casa? Na nossa casa limpa?' Depois disse-me que se repetisse contava à minha mãe – que é doente. 'Se gostas da tua mãe, deixa de ser gay'. Eu amava a minha mãe. Por isso, parei”. Tinha 16 anos. Só aos 18 procurou em chats na Internet alguém com quem falar sobre o assunto. “Na escola, entre os amigos, na família não podia falar com ninguém. Se és gay, ninguém te respeita. Mas eu só queria falar com alguém, ser respeitado.”

Quando acabou o liceu, o pai achou que ele devia ir estudar para a Turquia. Apanhou um avião para Beirute, de lá para Istambul. “A mala perdeu-se no caminho com tudo o que tinha, as roupas, o certificado de habilitações. Não me pude inscrever na faculdade”. Queria tirar turismo ou economia. Em vez disso foi trabalhar doze horas por dia num supermercado. “Lá não estive como refugiado, mas o Governo turco também não dá nada aos refugiados. Se não temos casa ficamos na rua, se não temos comida, não comemos.”

Decidiu partir. “Fui para a Grécia num barco com nove metros e com muita gente: 40 adultos e 20 crianças. Começou a chover, as minhas roupas ficaram encharcadas, a minha boca com sal. Foram cinco horas no mar. Partimos à meia-noite, chegámos às 5h10. Uma organização deu-nos roupas, estavam sujas, mas pelo menos estavam secas.  Escreveram os nossos nomes, tiraram fotografias. Eu não sou um refugiado normal por ser homossexual. Não poderia ficar na Turquia. A Europa repeita a minha sexualidade”.

O que diz o Alcorão?

Quando Omar Mateen entrou num bar frequentado por homossexuais e matou 49 pessoas, em Orlando (nos EUA), justificou que aquela era a vontade de Alá. Desde o massacre que têm surgido vários artigos e comentários em redes sociais associando o islão à homofobia. “A homofobia é uma parte integrante do islão”, escreveu a activista Ayaan Hirsi Ali (americano-holandesa de origem somali, que luta por uma reforma do islão), num artigo no Wall Street Journal. “A homofobia muçulmana está institucionalizada”, “os muçulmanos são homofóbicos, mesmo que muitos sejam eles próprios gays ou lésbicas”, e pertencer a grupos LGBT é “ir contra a sua religião”.

É isso que sente Ahmad?  “A religião não é má”, diz. O problema é cultural. “Todos os povos do Médio Oriente, muçulmanos ou cristãos, têm uma mente muito fechada. Os cristãos lá também não nos respeitam”. Ele não cortou com o islamismo. “Alguns amigos disseram-me para ir para a mesquita rezar e pedir a Deus para ser bom para mim: 'Não penses se és gay ou não, pensa só que és muçulmano'. Mas outros, também muçulmanos, disseram-me: 'Meu Deus, vais para o inferno'. Sou humano, só se fizer coisas más é que vou para o inferno.” Ter relações com homens já não está na lista dos seus pecados.

Quarenta dos 57 países ou territórios de maioria muçulmana têm legislação que condena a homossexualidade, com punições que vão de multas a chicotadas, passando por apedrejamento ou pena de morte, como acontece numa dúzia de países, argumenta Hirsi Ali. A morte também é punição certa nas zonas do Iraque e Síria controladas pelo Estado Islâmico. “A homofobia vem em muitas formas, mas nenhuma é mais perigosa do que a versão islâmica”.

Mas também apareceram artigos a lembrar que “o califado muçulmano esteve entre os primeiros a descriminalizar a homossexualidade, em 1858”, e que tradicionalmente, o islão reconhece “formas diferentes de sexualidade e relacionamentos”, como escreveram Haras Rafiq e Julia Ebner, da Quilliam Foundation, no Independent. Mehammed Amadeus Mack, professor no Smith College, publicou um artigo na Newsweek onde refere que “desde os primeiros contactos entre as civilizações cristã e muçulmana, os muçulmanos eram criticados não pela sua intolerância sexual, mas pela sua permissividade sexual. Tanto o orientalismo como o colonialismo apresentaram os muçulmanos como pervertidos, dados à bissexualidade, com impulsos sexuais indomáveis”.

O sheik David Munir, líder da mesquita islâmica central de Lisboa, afirma peremptoriamente: “Todas as religiões, incluindo o islão, não aceitam a homossexualidade. Isto é, não se fazem casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Esta proibição está no Alcorão”. E a homossexualidade também é explicitamente condenada – “o islão não permite”, diz, apesar de desconhecer se está prevista alguma condenação (mas não há espaço para a descriminação: “O convívio tem de ser pacífico entre os seres humanos independentemente da sua orientação sexual”, ressalva). Dá como exemplo o versículo sobre o Profeta Lot, enviado por Deus para Sodoma e Gomorra onde o povo transgredia as leis de Deus, nomeadamente com práticas homossexuais.

Faranaz Keshavjee, antropóloga especialista em questões de género, em particular no islão e nas sociedades muçulmanas, defende pelo contrário que “o que existe no Alcorão são várias referências sobre a liberdade de escolha, sobre o facto de o casamento ser apenas um contrato e não um acto sacralizável”. Explica que as diferentes interpretações existem porque existem em tudo o que diz respeito ao Alcorão. “A única coisa que é consensual é a shahada: 'Não há Deus a não ser Deus, e Maomé é o seu mensageiro'. A partir daqui, tudo o que aparece no islão é pluralismo... O Alcorão é retórica e por isso não há possibilidades únicas, monolíticas, em relação a nada”.

Ou seja, não se pode dizer com certeza o que diz o livro sagrado do islão sobre esse assunto (tal como sobre nenhum outro). E mesmo o versículo de Lot presta-se a várias interpretações: há quem defenda, por exemplo, que a ira de Deus se devia a estarem a ser cometidas violações e não ao facto de homens praticarem sexo com outros homens (a palavra homossexualidade é que certamente não é referida, uma vez que é uma criação de finais do século XIX).

“Não há uma, mas muitas posições, não há uma, mas muitas escolas de pensamento, e vários estudiosos têm criticado com razão a ideia de que há um corpo monolítico chamado islão, consistente no tempo e no espaço”, escreve no mesmo sentido Mehammed Amadeus Mack.

“Misturamos práticas culturais com a religião achando que o que estamos a fazer é religioso. Há sociedades que rejeitam na totalidade a homossexualidade, culturalmente, e utilizam a religião para manter essa proibição cultural”, afirma igualmente o sheik Munir.

Faranaz Keshavjee reforça: “O islão é feito de pessoas também muito iletradas, que não conhecem nada dos textos sagrados, estudaram pouco ou quase nada, e levam as coisas todas à letra sem contextualizar do ponto de vista da semiótica, da linguística. O desconhecimento gera muita confusão”, diz a antropóloga. “Quando retiramos a componente religião de toda a explicação dos factos civilizacionais, estamos a amputar o conhecimento, e essa amputação cria uma nata intelectual também deficitária, que é aquela que cria opinião, uma opinião enviesada. E é por isso que neste momento está tudo nas redes sociais a fazer este tipo de colagem entre uma religião e um acto assassino de um criminoso”.

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Memorial às vítimas do ataque contra a discoteca Pulse Spencer Platt/Getty Images/AFP

As perguntas de Bilal

“Os muçulmanos não perguntam porquê, não fazem perguntas. Não procuram saber a lógica. Por exemplo, alguns usam perfume sem álcool porque o islão proíbe o álcool. Mas só proibe as bebidas alcoólicas. Porque é haram [pecado]? É haram porque quando estamos bêbados perdemos o controlo. A religião não é má, as pessoas é que não fazem perguntas.” Bilal quer ser chamado assim porque não quer revelar a sua verdadeira identidade; este é o nome do rapaz por quem ele se apaixonou pela primeira vez. Estamos no Ramadão e por isso não pede nada quando nos sentamos para conversar à mesa de um café.

Nasceu há 33 anos e cresceu entre duas cidades, Sialkot e Lahore, no Paquistão. Apesar dos atentados permanentes no seu país, não foi por isso que o deixou. A sua família continua lá, na vida de todos os dias. Ele saiu porque era homossexual e mais tarde ou mais cedo os pais iriam obrigá-lo a casar. “Como poderia casar-me com uma rapariga? Como poderia mentir-lhe?”

Aos cinco anos já fazia jejum no Ramadão (as crianças estão dispensadas) e ficava horas seguidas a rezar. O pai é conservador ao ponto de não permitir música nem filmes em casa. Ele ouvia à mesma e levava raspanetes: “Porque é que estás a ouvir música quando podias estar a rezar?” Como dizer-lhe, então, que é gay? Ele próprio nem conhecia a palavra até ter 14 anos. “Não sabia o que era a homossexualidade. Depois fui ver à Internet... Pensava coisas muito tolas. 'Porque é que não sou normal?' Tentei matar-me, cortei os pulsos, mas comecei a pensar: 'E se falho? Como vou explicar isto?' E foi por isso que parei a tempo.”

No Paquistão, até as relações heterossexuais antes do casamento são ilegais, diz. “Uma relação homossexual, nunca. Nunca se sabe o que pode acontecer. É contra a sharia, contra a lei. Podem apedrejar, matar. Não é fácil ter encontros com um tipo. Ambos estaríamos mortos de medo.”

Só quando partiu para Londres, em 2012, é que começou “a fazer perguntas”, as tais que diz que os muçulmanos não fazem. “Eu não me sentia bem quando descobri o que era. Achava que era pecado. Mas quando fui para o Reino Unido comecei a pensar que não era uma questão de escolha. E interrogava-me: porque é que as pessoas nos odeiam? Deus criou-nos assim, sem nos perguntar: queres ser cristão? Queres ser muçulmano? Queres ser hetero? Queres ser gay? Então porque é que eu me odiava? Depois disso fiquei bem. Já não me odeio.”

Mas nem sempre as respostas que encontra são coerentes: “Ser gay é ir contra o Alcorão: está lá escrito, como está na Bíblia também, que um homem não pode ter relações com outro homem. É pecado. Se eu seguir o Alcorão, é pecado. Mas eu não sigo tudo. Como posso achar que é pecado? Agora já me aceito. Não está no meu controlo.”

Um dia voltará a casa. “Amo os meus pais. Não os vejo desde que me fui embora. Eles perguntam-se porque não tenho namorada. A minha irmã dizia-me em Londres para arranjar uma e eu respondia que não, que ela iria pensar que o fazia só por causa do visto. Uma rapariga disse-me uma vez num bar gay: 'Tenho a solução para ti: casas-te com uma muçulmana lésbica e encobrem-se um ao outro'. E eu encontrei uma rapariga, somos bons amigos. Mas ela tinha sido casada, estava divorciada, tinha filhos, era mais velha, seria mais uma situação difícil.”

Bilal sente-se triplamente discriminado: por ser gay, por ser paquistanês, por ser muçulmano. Veio para Lisboa em Novembro de 2014. Em Janeiro seguinte um atentado contra o jornal Charlie Hebdo, em Paris, dificultava-lhe a vida também aqui. “Por causa dos ataques, os outros muçulmanos sofrem. Num ginásio em Sacavém onde eu ia, sempre que lá entrava o dono dizia-me: 'Ó, Bin Laden, bum bum!' Quando as pessoas me mostram o seu ódio, eu próprio não gosto de mim.”

A frase "Não é difícil adivinhar que é homossexual. Ele também não o tenta esconder – não aqui, em Lisboa, onde vive há um mês" foi substituida por "Não esconde que é homossexual – não aqui, em Lisboa, onde vive há um mês"

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