As mortes sírias que não deixaram “olhos secos” no Conselho de Segurança

“Sim, é verdade. A ONU derramou lágrimas ao ver imagens de crianças sírias sufocarem até à morte.” Falta agir e fazer algo para impedir os ataques contra civis, como os raides com bombas de cloro.

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São perto de dez milhões os sírios que foram obrigados a deixar as suas casas Bulent Kilic/AFP

16 de Março, 20h30, Mohamed Tennari estava em casa a ver televisão. Primeiro, “ouviu os helicópteros, seguiu-se o ruído de algo a cair, depois um cheiro sufocante a lixívia”. Tennari, 35 anos, correu para o hospital que dirige, em Sarmin, província de Idlib, Noroeste da Síria. Recordou essa noite num encontro à porta fechada com os embaixadores dos países membros do Conselho de Segurança da ONU e mostrou-lhes um vídeo gravado no hospital: duas crianças em cima do corpo da avó, uma terceira, ainda bebé, na cama do lado. As bocas abertas, mãos com luvas que as tentam ajudar com oxigénio, injecções. As três, com idades entre 1 e 3 anos, morreram, os pais e a avó também.

Esta família, como tantas outras, terá morrido vítima de ataques com bombas que são construídas por barris cheios de cloro, um químico útil em vários campos mas cuja utilização como arma de guerra está proibida – há até uma resolução aprovada pelo Conselho de Segurança a 10 Março, dez dias antes dos ataques descritos por Tennari, a banir o seu uso na Síria.

Em Setembro do ano passado, já a Organização para a Proibição das Armas Químicas alertava para o uso “repetido e sistemático” de cloro em bombardeamentos em vilas no Norte da Síria. De acordo com a ONG Human Rights Watch, vários barris com cloro foram largados em áreas sob controlo da oposição na província de Idlib entre 16 e 31 de Março.

Segundo o activista Kenan Rahmani, nascido em Damasco mas a viver em Washington e que acompanhou a delegação de médicos sírios durante as audiências desta semana em Nova Iorque, enquanto os diplomatas ouviam os testemunhos, o regime de Bashar al-Assad voltava a usar bombas com cloro.

Na audiência participaram ainda Zaher Sahloul, presidente da Sociedade Médica Sírio-Americana, que viajou recentemente até Sarmin para entrevistar civis e médicos, examinar provas e trabalhar com os médicos para os ajudar a melhorar a resposta a futuro ataques (Tennari estudou para ser radiologista e nunca foi treinado para tratar vítimas de ataques com cloro), e Qusai Zakarya, um jovem que sobreviveu aos ataques com gás sarin de Agosto de 2013, quando pelo menos 1400 pessoas, incluindo 400 crianças, morreram em Ghutta, zona dos arredores de Damasco que resistia há ano e meio a Bashar.

Encontro pouco comum
O encontro com estes três sírios foi “muito pouco comum e muito emocional”, diz a embaixadora dos EUA na ONU, Samantha Power. “Se houve olhos secos na sala eu não vi nenhuns”, descreveu, repetindo o que contaram outros que estiveram presentes.  

“Sim, é verdade. A ONU derramou lágrimas ao ver imagens de sírios sufocarem até à morte. Alguns membros do Conselho de Segurança até se obrigaram a assistir apesar de tentarem desviar o olhar”, escreveu Kenan Rahmani na sua página de Facebook. “Mas isso não chega para salvar os sírios que vivem a realidade que aqueles vídeos transmitem. O mundo precisa de acção.”

Power sublinhou que quem tenha estado por trás daqueles ataques tem de ser “responsabilizado”, admitindo que as provas têm de ser suficientemente fortes para convencer todos os membros do Conselho de Segurança (leia-se Rússia) mas lembrando, ao mesmo tempo, que na Síria quem tem helicópteros é o regime. “Se não agirmos perante isto então outros vão acreditar que podem fazer este género de coisas com impunidade e isso será deplorável”, disse aos jornalistas em Nova Iorque o embaixador da Nova Zelândia, Jim McLay.

Naquela noite de 16 de Março, contou Tennari, pelo menos 120 pessoas chegaram ao seu hospital depois do que ele descreve como dois ataques. “Foi o caos”, afirmou. O médico conhecia o pai das crianças que morreram, e que morreu também, tinha uma loja onde reparava aparelhos electrónicos em Sarmin. A família vivia numa cave que se transformou numa “câmara de gás” quando o gás tóxico se infiltrou através do sistema de ventilação.

Tennari diz que temeu pelo seu próprio estado, sentindo-se nauseado e com os olhos a arder. Uma das enfermeiras desmaiou. A maioria dos feridos, garante, eram mulheres e crianças.

Insuficiência renal
Com o conflito sírio já no seu quinto ano e sem sinais de abrandar nas suas consequências, nos últimos dias ouviram-se nos EUA outros apelos. Como por exemplo, os repetidos pedidos do alto comissário da ONU para os Refugiados, António Guterres, para que os países industrializados, incluindo os EUA, dêem abrigo a muitos dos 4 milhões de sírios que já fugiram do seu país. Sem conseguir mais enfrentar o afluxo de refugiados, os países da região começam a fechar fronteiras e a impor restrições. Há meses que Jordânia e Líbano restringiram as entradas, a Turquia está agora a fazê-lo.

“A escala desta crise é enorme e só vai piorar”, disse ao New York Times Alexander Betts, professor de estudos de refugiados em Oxford, enquanto o Congresso debatia o pedido de Guterres. “A crise síria coloca todo o sistema humanitário numa encruzilhada. Obriga-nos a repensar de forma radical como protegemos e ajudamos pessoas deslocadas em tão grande número.”

São perto de dez milhões os sírios que foram obrigados a deixar as suas casas e vivem em campos ou abrigos temporários dentro do país ou fora. A muitos, as agências internacionais não têm como fazer chegar qualquer tipo de ajuda. Segundo a ONU, cerca de 440 mil estão actualmente cercados na Síria por forças governamentais ou grupos armados fundamentalistas.

Aproveitando a reunião da ONU, o médico Zaher Sahloul pediu uma audiência com os enviados russos para apelar em nome de um grupo: os que precisam de medicamentos indispensáveis que Assad não deixa passar, em particular os que têm insuficiência renal e necessitam com urgência do líquido usado na diálise. Para alguns já será tarde – segundo Sahloul, dez pessoas morreram recentemente em Duma, perto de Damasco, por insuficiência renal; outras 23 arriscam o mesmo destino. “O líquido de diálise está bloqueado, pedimos-lhes ajuda para o fazer entrar em Duma.”

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