As eleições que só servem para o exacto oposto daquilo para que existem

Hoje, a União Europeia é um monstro híbrido e perigoso, controlado por uma burocracia que detesta a democracia e que acha que “ela” é que sabe como se deve “governar” a Europa e cada país em particular.

Nas eleições europeias não se discute a Europa porque a Europa que existe não interessa aos seus apoiantes que seja discutida. E a discussão da Europa que se pretende fazer, nas candidaturas do “arco da governação”, na comunicação social ainda mais europeísta, nos meios dos negócios, no “arco dos fundos”, não tem objecto, nem existe, é uma fábula. É a Europa virtual do wishfull thinking para os bem-avontadados e aquela cuja retórica serve os empregos e os negócios dos que estão “por dentro”.

A ficção mais completa sobre a Europa é falarmos da União Europeia como sendo a Europa fundada por Monnet, Schumann, Gasperi, Adenauer e outros. Não é. Esta acabou algures na década de noventa, entre a queda do Muro de Berlim, a unificação alemã, a entrada dos países do Centro e Leste para União, a guerra na ex-Jugoslávia. Parece paradoxal que o processo de autodestruição da Europa comunitária, tal como existia no pós-guerra, tenha tido origem naquele que parece ter sido o seu maior sucesso: a “unificação” da Europa dividida pela Guerra Fria, e a extinção da superpotência URSS, cujos tanques permaneciam onde tinham parado no final da guerra. Mas, desde início, estava-se na pura ilusão. A derrota da URSS na Guerra Fria deveu-se aos EUA, principalmente à Administração Reagan, culminando um longo processo de resistência militar, de “inteligência” e político, para qual a maioria dos países europeus, com excepção do Reino Unido, pouco contribuiu e que, em vésperas da própria queda do Muro, contestava recusando-se ao burden sharing que os americanos lhe pediam. A principal contribuição europeia veio de um país que estava do lado errado da Cortina de Ferro, a Polónia, e de uma força que a Europa laica personificada na França, nunca valorizou, o Papa João Paulo II.

Os europeus rejubilaram e um período de grandes ilusões e crescentes egoísmos substituiu o realismo dos “pequenos passos” de Monnet. Passou a considerar-se os EUA o objecto da competição europeia, num remake do gaulismo, acelerou-se a entrada das nações do antigo Pacto de Varsóvia na União, mesmo quando elas estavam escassamente preparadas, ou, pior ainda, quando as nações da União, como a França, não estavam dispostas a dar-lhes o que tinham direito a receber. Pouco a pouco, os efeitos da “unificação alemã”, em conjunto com a pressão da globalização e a necessidade de encontrar uma nova fórmula política, que era de natureza bem distinta daquela que fundara a Europa, visto que introduzia critérios de desigualdade, começaram a fazer estragos no “espírito” inicial.

O Tratado de Nice, o tratado maldito, foi o melhor retrato desse processo, onde se conjugava uma fuga para a frente com um upgrade insensato e imprudente, das instituições europeias, em que a retórica grandiloquente sobre a Europa escondia o retorno a um cada vez maior egoísmo nacional. A Constituição, o mais alto ponto do optimismo europeísta, soçobrou no fantasma do “canalizador polaco” – estava tudo dito e explicado para quem o queria ver. Mas a maioria dos governantes europeus não só não o queria ver como começou uma deriva antidemocrática na União, em que o modus faciendi do Tratado de Lisboa é exemplar.

Hoje, a União Europeia é um monstro híbrido e perigoso, controlado por uma burocracia que detesta a democracia e que acha que “ela” é que sabe como se deve “governar” a Europa e cada país em particular. Os parlamentos nacionais são para esses burocratas o local da irracionalidade da política produzida pelos “incompetentes” dos políticos. A troika foi uma das faces dessa burocracia, que em Bruxelas, Frankfurt, e no Luxemburgo, está encostada ao poder do dia, como sempre esteve. Neste caso, o poder do dia começou por ser um directório França-Alemanha, hoje é só alemão. Se amanhã, por absurdo, fosse inglês ou russo, a mesma burocracia lá estaria encostada a legislar sobre tudo e todos, com uma única racionalidade: a Lei de Parkinson.

A burocracia é um dos aspectos do monstro europeu. Manda muito, mas tem um comando que interioriza como seu, até porque muitos aspectos desse comando encaixam bem no seu modo de actuar. Esse comando reforça-se à medida que a democracia se extingue no processo europeu. De há muito, nenhuma decisão fundamental da União foi levada ao voto popular e, quando o foi, perdeu. A resposta de governos, aliados aos grandes negócios que precisam da União como de pão para a boca, foi retirar deliberadamente e com dolo o processo de decisão europeu do controlo democrático. Esta é a história do Tratado de Lisboa, aprovado sobre a traição de promessas referendárias feitas em muitos países europeus. A partir dessa génese envenenada era só esperar que a União mostrasse uma face agressiva para com alguns dos seus membros, o que aconteceu com a chamada “crise das dívidas soberanas”, criada em grande parte pela sua própria resposta autoritária ao caso da Grécia. A mesma Grécia que se tinha permitido entrar no euro sem para tal ter condições, para maior glória da Europa.

Hoje, o debate europeu centra-se na crise económica e nas sequelas da gestão do euro. Mas nem sequer é a curto prazo o mais grave efeito da disformidade actual da União. A mistura de autoritarismo e de aventureirismo conhece o seu maior risco e perigo numa pseudopolítica externa da União, feita por proclamações de países que não estão dispostos a gastar dinheiro para ter forças armadas credíveis e colocar tropas no chão e por isso dependem sempre dos EUA. Isso não tem impedido a União de um ciclo de intervenções insensatas e ignorantes da História, cujos resultados agravaram as perspectivas da paz mundial. A Líbia feudalizada e bárbara resultou de um ajuste de contas com um amigo especial, Kadhafi;  a Síria foi empurrada para uma guerra civil com clara interferência europeia, e o caso mais grave da Ucrânia, porque envolve uma potência nuclear, onde a União brincou às barricadas para impor um governo de uma parte do país contra a outra parte, provocando um processo de destruição do próprio país e um reforço do expansionismo russo. Devia haver um tratado que impedisse a União Europeia, mais os seus governos e a Baronesa, de jogar aos grandes do mundo, quando não se tem força nem se pensa nas consequências.

Esta Europa, disforme e perigosa, não é de todo discutida nas actuais eleições europeias, que são em si mesmas um claro sintoma de tudo o que está mal por essa Europa fora, e pior em Portugal. À tentativa, na qual se gastam milhões de euros, de fazer com que as pessoas se interessem pela Europa e pelas eleições, soma-se o facto de não haver substância nem diferenças nas candidaturas principais. PS, PSD e CDS são hoje Dupont e Dupond. Dependem dos seus grupos europeus, cada vez mais poderosos numa dimensão que escapa ao escrutínio em cada nação. São uma espécie de Internacional Europeia com regras de inclusão, bom comportamento e exclusão, cada vez mais rígidas. Votam em conjunto no Parlamento Europeu em tudo o que é fundamental.

Os portugueses que vão às urnas vão, na sua esmagadora maioria, para punir ou defender o governo. Os portugueses que nem isso fazem, e não vão votar, ficam em casa por considerarem estas eleições inúteis. Votam na praia contra a ficção europeia, porque consideram que, votando ou não, não serve para nada, quem manda é a senhora Merkel e a troika e eles não vão a votos. Por isso, estas eleições, pela positiva, não valem para nada a não ser para a política interna. Pela negativa, vão ser mais um acto de deslegitimação da actual União Europeia, pelos europeus que não consideram que haja qualquer reforço da democracia nestas eleições.

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