Argélia só viverá a “primavera árabe” quando Bouteflika sair de cena

Foto
Apoiante da Frente de Libertação Nacional durante a campanha das últimas eleições Louafi Larbi/AFP

A UE legitimou os resultados das legislativas, mas o académico Larbi Sadiki, especialista no Magrebe, desconfia que a vitória do antigo partido único sobre os islamistas “foi um golpe de um presidente civil”.

Contra as expectativas de um triunfo islamista, a Frente de Libertação Nacional FLN), partido que deteve o monopólio do poder na Argélia desde a independência em 1962 até às primeiras eleições multipartidárias em 1990, venceu as legislativas do dia 10, mas não convenceu Larbi Sadiki. “A democracia do pão ganhou o dia”, comentou o académico tunisino, especialista em questões do Magrebe. “Este não foi, de modo algum, um teste democrático. Podemos dizer que a votação foi manipulada – tendo sido usados os mesmos métodos de suborno do Estado.”

Resultados anunciados na sexta-feira pelo Ministério do Interior deram à FLN 220 dos 462 lugares do Parlamento, seguida da União Democrática Nacional (RCD), do primeiro-ministro Ahmed Ouyahia, relegando para terceira posição a aliança Argélia Verde, composta por partidos islamistas que já detinham quatro pastas ministeriais no Governo cessante. A Frente das Forças Socialistas (FFS, com reduto na Cabília berbere) terá 22 deputados; o Partido dos Trabalhadores 20; os candidatos independentes 19; a Frente Nacional Argelina nove; e o Partido da Justiça e Desenvolvimento (pós-islâmico) sete.

Jose Ignacio Salafranca, o chefe da delegação de observadores da União Europeia (foram autorizados, pela primeira vez, 500 supervisores de vários organismos internacionais), reconheceu “algumas falhas” mas também “muitos pontos positivo”. Estas eleições “constituíram o primeiro passo no caminho para as reformas que irão conduzir, por seu turno, a um maior aprofundamento da democracia e dos direitos humanos”, salientou.

Antes do escrutínio, descrito como “o mais livre e transparente”, o Presidente, Abdelaziz Bouteflika, dirigente da FLN, levou a cabo várias medidas, como o aumento dos subsídios dos bens básicos e dos salários, de modo a travar uma potencial revolta popular. Era natural que o antigo partido único esperasse recompensa nas urnas. “Sim, houve uma mobilização para que a clientela do regime votasse”, disse Sadiki ao PÚBLICO, por email.

Quanto à denúncia da coligação islamista Argélia Verde de que houve “uma fraude generalizada” e não se responsabilizaria “pelo que vier a acontecer”, Sadiki, professor de História do Médio Oriente na Universidade de Exeter (Reino Unido) e antigo investigador do Carnegie Middle East Center (EUA), desvalorizou “ameaça velada”. Descreveu-a como “alusão ao passado recente quando a ‘democracia’ foi abortada pelo Estado. A leitura que eles [islamistas] fazem dos resultados é a de que a história se está a repetir: só que, desta vez, o golpe foi desferido por um esbanjador presidente civil e não pelos generais.”

A revista britânica The Economist notou que o poderoso establishment político-militar que domina a Argélia desde o fim do período colonial francês há 50 anos tomou todas as precauções para assegurar que o Parlamento será apenas “um mosaico de partidos sem uma voz dominante”. Sadiki comentou: “Tudo foi conduzido para impedir uma vitória islamista. Não era plausível que a FLN ganhasse agora 200 lugares, depois de um recorde de fracassos e de um profundo descontentamento popular. [A vitória] deve-se à oculta e misteriosa manipulação por parte do [que os argelinos designam por Le] Pouvoir!

Por que motivo escapou a Argélia às revoluções da Primavera Árabe? Sadiki, autor de dois livros, Arab Democratization: Elections without Democracy e The Search for Arab Democracy: Discourses and Counter-Discourses, corrobora as explicações de outros analistas regionais: “A espiral de violência e contra-violência, que [depois de o Exército ter anulado os resultados das eleições de 1991 e ilegalizado a vitoriosa Frente Islâmica de Salvação] causou 200 mil mortos, dezenas de milhares de feridos e milhares de desparecidos, mitigou os protestos. O trauma da guerra civil prejudicou a capacidade de mudança através de uma sublevação. Na Argélia, há uma espécie de aversão à mudança pela violência: a longa guerra contra a França pela independência causou 1,5 milhões de mortos; a guerra civil não foi menos sangrenta. A sociedade evita, deliberadamente, mergulhar noutra fase de violência.”

“O Estado na Argélia”, adiantou Sadiki, “tem mostrado a sua resiliência e capacidade de se defender a si próprio por meios violentos durante um longo período de tempo. O Estado retém e defende prontamente o seu ‘monopólio sobre o uso legítimo da força’. Estes factores, referiu o colunista da Al Jazira, são muito importantes para compreender por que a Primavera Árabe não infectou a Argélia”.

Os resultados anunciados na sexta-feira não surpreenderam apenas por os islamistas terem sido relegados para a terceira posição, dado que eram os favoritos, mas também porque a afluência às urnas foi maior do que se esperava. As previsões eram as de que não ultrapassariam os 37% registados em 2007. “Não há meios independentes para confirmar a veracidade desta participação anunciada pelo Governo”, observou Sadiki. “E mesmo que tenha sido de 42% não há razão para celebrar num Estado com 37 milhões de habitantes onde o número de eleitores é elevado [21,2 milhões] e menos de 50% votaram. O grosso dos que afluíram às secções de voto terá sido composto por funcionários públicos e clientes do regime que tinham muito em jogo. Os que votaram apoiaram a ‘legitimidade da provisão alimentar’ por parte do Estado. Números e estatísticas, em particular nestas eleições, não são barómetros precisos para avaliar as acções políticas do Estado argelino.”

“Não há dúvida”, realça Sadiki, na entrevista ao PÚBLICO, que “o deep state tem um braço longo na Argélia, e as suas mãos estão enfiadas nos cofres do Tesouro. Isto explica a coesão do regime e a sua aliança estreita com o Pouvoir – sobretudo, com o aparelho militar e policial. Os islamistas [tolerados e ‘moderados’, que Bouteflika levou para o Governo] vão continuar a servir um propósito: excluir os ilegalizados que ganharam as municipais em 1990 e as legislativas de 1991. Duvido que os islamistas – fazendo parte do sistema – sejam autorizados a ter um papel de liderança. Eles estão nos ‘bolsos’ do regime, e assim permanecerão.”

As vitórias de grupos islamistas após a queda dos ditadores são explicadas por Sadiki como o resultado de “uma espécie de ‘fadiga’ com as políticas secular-nacionalistas: as acções desses regimes desde a independência têm sido degradantes: conseguiram elevar as expectativas mas foram incapazes de cumprir as promessas que fizeram. Falharam em todas as frentes de desenvolvimento humano e boa governação: elevado desemprego juvenil; brutalidade policial, inúmeros monopólios; políticos e económicos; o’ grande roubo’ do Estado por parte de famílias. O que acontecia na Tunísia, no Egipto e na Líbia repete-se na Argélia, onde o irmão do Presidente, Saïd Bouteflika, tem estado envolvido na gestão dos assuntos do Estado. É este fracasso que deixa as pessoas desiludidas. Até certo modo, podemos declarar que não se trata de os islamistas serem ‘populares’ mas sim de os actuais regimes, entre eles as monarquias árabes ricas em petróleo, serem ‘impopulares’. Não inspiram confiança.”

Quanto ao exemplo da Turquia, governada por um partido do “islão político pragmático”, o AKP, de Recep Tayyp Erdogan, e que muitos consideram estar a ser seguido pelas forças islamistas recém-chegadas ao poder, Sadiki é céptico. “O modelo turco é uma mistura de islamistas e exército. Este modelo pode ser replicado no Egipto, mas duvido que pode ser aplicado na Tunísia, onde o exército é fraco.”

As eleições de quinta-feira terão sido as últimas sob a liderança de Bouteflika, 75 anos e a sofrer de um cancro que o impedirá de procurar novo mandato em 2014. Sadiki está convencido de que quando o presidente sair de cena haverá “uma extraordinária mudança” na Argélia. “Duvido que personalidades como [Abdelaziz] Belkhadem [líder da FLN] e Ouyahya [o primeiro-ministro cessante] possam sobreviver quando Bouteflika partir. Vão emergir novos rostos e uma nova política – e talvez seja, então, o momento de fazer reviver a ‘Primavera Árabe’ argelina. Vamos ouvir falar mais da Argélia nos próximos anos. O país [o maior de África] depende das receitas do petróleo e do gás [é o quinto maior fornecedor deste recurso à Europa] e não estou a ver o Estado a adoptar uma posição hostil em relação à União Europeia: cada vez mais, tudo irá depender dos laços económicos com a UE.”

Sugerir correcção
Comentar