“Aqui jaz a Líbia”: e os destroços atingirão a Europa

Para lá da ameaça de se tornar num santuário terrorista, a Líbia pode vir a desfazer-se

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Na pedra tumular poder-se-ia escrever: “A Líbia foi um país africano, de cultura arábico-berbere, produtor e exportador de gás e petróleo, situado às portas da Europa e que se libertou de um tirano em 2011.” Dela pouco se fala desde a morte de Khadafi. Outros conflitos, da Ucrânia ao Médio Oriente – e agora a crise grega – têm-na mantido num discreto esquecimento. Em Fevereiro, algo mudou. Soou o alarme nas capitais europeias e nos países vizinhos da Líbia.

A decapitação de 21 cristãos coptas egípcios por um bando ligado ao Estado Islâmico (EI) fez mover a situação. O vídeo das execuções foi difundido no dia 15. A Força Aérea egípcia respondeu no dia seguinte bombardeando bastiões jihadistas na cidades de Derna e Sirte.

O EI não enviou um destacamento para a Líbia. O autor do crime é um grupo jihadista líbio que prestou vassalagem ao “califado”, em Novembro, adoptou a sua “marca” e copiou os seus métodos. Outros grupos aderiram ao EI. Estão a implantar-se nas zonas costeiras. “Se estes movimentos conseguirem controlar a costa líbia – a mais longa de um país da África do Norte, com 1955 km, será o caos no Mediterrâneo”, diz à AFP um diplomata europeu.

Roma, Paris e Madrid falam em grave ameaça à sua segurança. O analista francês Arthur Quesnay explica: “Os governos ocidentais estão apavorados pelos focos e santuários que se estão a criar segundo o mesmo modelo sempre que um Estado se desmorona.” Temem novas avalanchas de refugiados e a infiltração de terroristas.

“A Líbia é hoje o maior viveiro terrorista do mundo”, declara à AFP Mazen Cherif, especialista militar tunisino. Talvez exagere por ser vizinho. Mas também a Argélia está assustada “porque estes grupos visam em primeiro lugar a Argélia e a Tunísia”. Haverá jihadistas tunisinos a combater na Líbia e líbios em contacto com jihadistas do Mali e do Boko Haram, da Nigéria. É uma nebulosa que está a crescer.
A Líbia começou por ser um lugar de refúgio ou de passagem para grupos islamistas estrangeiros, anotou Said Haddad, especialista na Líbia. “Muito grave será que a Líbia se torne num bastião para estes grupos jihadistas. É o que estamos a ver com o exemplo de Derna.”

O jogo do Egipto
Os italianos estão na primeira linha e procuram um acordo com os franceses para responder à ameaça líbia. Se estão de acordo quanto ao terrorismo, os seus interesses não coincidem totalmente. Roma está preocupada com a imigração e com os seus interesses na Tripolitânia (Oeste): o petróleo e o gasoduto Greenstream. A França está mais preocupada com a região do Fezzan (Sul), um santuário para os jihadistas do Mali.

O analista italiano Lucio Caracciolo teme que Paris opte por fazer um eixo com o Cairo, apoiando uma intervenção militar disfarçada de “missão de paz” sob a égide da ONU, o que seria uma nova versão da “guerra contra o terrorismo”. Mas o Cairo teve de recuar no Conselho de Segurança da ONU em relação a este projecto. Dois ministros italianos (Defesa e Estrangeiros) admitiram a hipótese militar, mas o primeiro-ministro, Matteo Renzi, reafirmou a opção pela diplomacia. Os países europeus não parecem dispostos a correr o risco de tal intervenção.

O Egipto não pode ser indiferente à Líbia. Terá lá entre 700 mil e 1,2 milhões de trabalhadores. Os dois países têm uma fronteira comum de 1000 km. E está particularmente interessado na Cirenaica. A capital, Bengasi, está dominada por milícias ligadas à Irmandade Muçulmana e lá se refugiaram muitos membros da Irmandade egípcia. Para o Presidente Al-Sissi, Bengasi é uma ameaça potencial. Poderá servir de base para islamistas radicalizados relançarem o combate contra o Cairo. Por isso apoia a milícia dita “liberal” do general Khalifa Haftar. Estará em negociação com Moscovo para lhe fornecer armamento – embora a ONU mantenha o embargo das armas para a Líbia.

Por fim, 80% da produção líbia de petróleo está localizada na Cirenaica. O Egipto é hoje um importador de energia e tem dívidas de 5000 milhões de dólares às petrolíferas. Aumentando a influência na Líbia, poderia garantir o abastecimento petrolífero em melhores condições. Para o Cairo, o cenário ideal seria uma Líbia estabilizada, e talvez federalizada, sob hegemonia da Cirenaica. Poderá também apostar na divisão do país: mas é tabu dizê-lo.

A hipótese de intervenção militar directa faria o Cairo correr o mesmo risco que Nasser correu quando envolveu o seu Exército na guerra civil do Iémen na década de 1960: um desastre. Mais viável é armar aliados e fazer intervenções pontuais.

Um exercício de memória
Alguém fará um dia a história da desastrosa operação de 2011. Há um relativo sentimento de culpa ocidental. Em Agosto de 2011, ainda antes da queda de Tripoli, corria nos meios da NATO uma expressão: “Sucesso catastrófico”. Um responsável da Aliança dizia ao The Times, sob anonimato, que uma vitória dos rebeldes “será o pior desfecho para a Líbia”. Explicava: “Mesmo que não seja catastrófico, será um sucesso caótico porque a oposição não está apta a governar e haverá um vazio de poder se Khadafi cair.” Falava-se nos riscos de guerra civil e divisão do país (ver PÚBLICO de 20 de Agosto de 2011). Não eram precisos oráculos. Bastaria saber o que era a Líbia.

Um historiador da Líbia, o americano Dirk Vandewalle, advertiu: “O natural impulso dos ocidentais será insistir em eleições tão cedo quanto possível. Mas eleições sem pré-requisitos para uma democracia moderna são ocas e contraproducentes.” Foi o que se viu. Hoje, a Líbia tem “democracia a mais”: dois parlamentos e dois governos inimigos em cada extremo do país, Tripoli e Tobruk. Os islamistas, sobretudo os da Irmandade Muçulmana, e as milícias de Misurata não aceitaram a vitória dos “liberais” nas eleições de 2014. O novo Parlamento refugiou-se em Tobruk. O antigo reúne-se em Trípoli. Ninguém lhes obedece, mas simbolizam a ameaça de partilha do país. E reflectem as rivalidades internacionais: a Turquia e o Qatar apoiam o Governo de Trípoli, os egípcios, os sauditas e os Emirados Árabes Unidos o de Tobruk. Este acaba de proibir a actividade de empresas da Turquia, “cúmplice” dos islamistas de Trípoli. “Isto significa que a divisão entre a Cirenaica e a Tripolitânia se torna também económica”, escreve o jornalista italiano Alberto Negri. “Chegou o dia da partilha da Líbia e do seu petróleo.”

A Tripolitânia e a Cirenaica têm histórias e culturas distintas. O mesmo se deve dizer do Fezzan. Foi a Itália fascista que em 1939, no início da II Guerra Mundial, fundiu as três grandes regiões numa única “província italiana”. Esta unidade foi confirmada pela ONU em 1949. Dada a História, e para lá da ameaça terrorista, é real a possibilidade do fim da Líbia.

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