"O povo continua pobre"

Em Irará, na Bahia, 70% da população recebe Bolsa Família (BF), o programa de subsídios para as famílias mais pobres que deu votos a Lula e Dilma. Serve para matar a fome, para comprar um computador para aprender inglês. Instrumento eleitoral ou combate inevitável à pobreza? Dá autonomia às mulheres ou torna-as mais passivas?

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"Só não vou votar no cara que tirar o Bolsa Família" Joana Gorjão Henriques, Vera Moutinho

O bairro do Corte, em Irará, no estado da Bahia, deve o seu nome a uma circunstância acidental. Aqui deveria passar o caminho-de-ferro, fez-se o corte para a linha, mas o projecto não seguiu em frente. É uma espécie de metáfora da região, uma das mais pobres do Brasil.

Chegamos ao Corte no início de Fevereiro, depois de atravessar o centro de Irará, onde há igrejas evangélicas a cada esquina. O ar está húmido e denso. É Verão, mas as nuvens cinzentas, baixas e concentradas, ameaçam chuva a qualquer momento. O carro vai aos solavancos na estrada de terra batida: vêem-se casarios baixos, alguns coloridos de verde-água ou cor-de-rosa muito claro, alguns são apenas tijolos, outros têm ar de abandonados mas não estão.

Há lixo na rua, crianças a brincar na estrada e mulheres dentro das casas. Adultos e crianças olham-nos curiosos através das janelas.

Chegámos aqui pela mão de Wanderson Alves, jovem organizador da primeira marcha gay na cidade, algo ousado para um local pequeno como este. Ele, que conhece bem o povo, já sabe que se batermos à porta as pessoas ficam com medo. Indo com alguém da terra, será mais fácil receberem-nos.

"Aqui é tudo Bolsa Família", diz Vanda de Jesus, 65 anos, atirando o braço para a frente e para trás no sentido da rua, ao mesmo tempo que sorri. Ela é do tempo em que não havia apoios do Estado, as mulheres trabalhavam nas roças de sol a sol e passavam fome.

Em Irará, a percentagem da população que recebe Bolsa Família (BF) é de quase 70%, superior à do estado da Bahia, que tem 43% (dados Ministério do Desenvolvimento Social de Janeiro de 2014). São cerca de 5400 famílias, numa população que não chega aos 30 mil habitantes, de acordo com o escritório BF da cidade. No bairro do Corte, porta sim, porta sim, há gente a receber este subsídio (de alguma maneira o equivalente ao abono de família ou rendimento social de inserção portugueses), que impõe, como contrapartida, que as crianças e jovens vão à escola e sejam vacinadas.

Com dez anos, o BF chegou aos 50 milhões de beneficiários em 2013, um quarto da população brasileira, garantindo que 36 milhões estejam fora da extrema pobreza. O governo argumenta que o BF combate a fome e o trabalho infantil, reforça a educação e a saúde; os críticos dizem que compra votos. Sendo uma das grandes armas da Presidente Dilma Rousseff, como foi do seu antecessor, Lula da Silva, o BF é, por isso, polémico, e alguns pontos da discussão não são muito diferentes dos que existem em relação a qualquer subsídio em Portugal: resolve o problema da pobreza ou é apenas paliativo? Cria dependência e torna as pessoas passivas? Serve sobretudo de instrumento eleitoral?

E porque, por regra, é transferido para as mulheres, são elas que acabam no centro da discussão: dá-lhes poder ou, pelo contrário, volta a arrastá-las para dentro de casa?

Receber o Bolsa Família e voltar à escola
O povo desconfia de estranhos no Corte, mas depois facilmente conversa quando abre a porta. Um dos filhos de Jailma Cerqueira, 28 anos, está à mesa da sala a escrever num caderno. As aulas ainda não começaram, ele já treina a caligrafia. Feitas as apresentações, Wanderson Alves deixa-nos.

Em casa de Jailma, um apartamento com uma sala rectangular e dois quartos, telhas à vista, há uma pequena televisão que só recebe a TV Globo. Não há água canalizada nem frigorífico — ela usa o dos vizinhos, mas nem sempre, porque não gosta de incomodar: "Coisa que conserva deixo na minha casa mesmo."

Com mais de 30 graus de temperatura neste Verão, olha-se para os pacotes de leite pasteurizado na mesa da sala e pensa-se que o melhor é serem bebidos rapidamente. "Fome Zero", têm escrito.

As crianças vizinhas que chegam da rua encavalitam-se na janela de casa de Jailma; querem ver quem somos, querem ouvir a conversa. Dão risinhos em conjunto de vez em quando.

Nailson, de oito anos, Weslen, de sete anos, e Fabrício de três: assim se chamam os filhos de Jailma. Quando Fabrício nasceu, o homem que ela diz ser o pai não assumiu a paternidade. Ela foi "na Justiça", e está à espera de fazer um segundo teste pois o primeiro "deu negativo" — mas tem a certeza de quem é o pai. Pelos dois filhos mais velhos, de outro homem de quem está separada, Jailma recebe uma pensão de 98 reais por mês. Recebe também BF há quatro anos: 282 reais. O salário mínimo no Brasil é de 225 euros. Ela, ao todo, recebe menos de metade, uns 120 euros. "Compro cesta, pago bujão [botija de gás], água, luz, compro as coisas dos meninos — às vezes compro em prestações porque o dinheiro não dá", diz.

Jailma diz que não pode trabalhar por causa dos filhos, não tem com quem os deixar durante o dia, o pai não fica com eles. "Aí vivo do Bolsa Família. Veio ajudar em muita coisa." Paga, porém, 60 reais por mês (18,6 euros) a uma vizinha para tomar conta dos filhos, enquanto ela regressa à escola de noite, porque "hoje o estudo é tudo".

A mãe recebeu os subsídios anteriores que deram origem ao BF, mas Jailma não se lembra bem de quais (se o Bolsa Escola, o Auxílio Gás ou o Bolsa Alimentação, implementados por Fernando Henrique Cardoso).

Porém, olha para o BF como algo fundamental na sua vida — e para Lula como o seu autor e "maior Presidente do Brasil", por isso votou também na "escolhida" dele, Dilma.

Como todas as beneficiárias do BF que entrevistámos, é também crítica em relação ao programa. "Não trabalho por causa dos meus filhos. Agora outras que têm oportunidades, que têm pai, têm mãe, têm parente para tomar conta dos filhos, não trabalham porque não querem. E tem outros que só querem depender desse dinheiro."

Na rua de Irará, vários falaram de fraudes, de pessoas com bons ordenados que conseguiam BF, na diferença entre o que um e outro recebiam pelo mesmo número de filhos como algo injusto (na verdade, o valor do BF depende do rendimento per capita do agregado familiar).

Emerson Nogueira Pinho, 35 anos, a trabalhar no BF desde o princípio, reconhece que "o controlo social do programa é difícil, são milhares de famílias...". O ministério manda os dados, faz cruzamentos, o gabinete de Irará recebe as listas das revisões, vai fazendo o acompanhamento, com visitas domiciliárias – mas "as pessoas normalmente omitem informações". Seja como for, descreve: "Somos um município pobre. O Bolsa Família representou mudanças importantes" num local onde não há emprego, nem perspectivas de criação de novos postos de trabalho em breve. "O Nordeste tem muitos problemas, a gente foi discriminada durante muitos anos" — é, aliás, das zonas mais pobres do Brasil, e a que tem as taxas mais altas de beneficiários (45,3% da população, em comparação com 12,8% no Sul, por exemplo).

Emerson está a assistir ao chamado segundo ciclo BF, em que "as filhas que foram cadastradas há dez anos, hoje são mães e estão-se desligando da família" –  e a receber o subsídio.

Mas não vê isso como espelho de uma dependência: "No contexto histórico não é. Passámos 300 anos sendo explorados, quer dizer que em dez anos a gente vai concertar esse passado?" O rendimento mínimo, sublinha, é um direito. E há um longo caminho pela frente no combate à pobreza. "Estamos numa escada e essa escada ainda tem muitos degraus."

Mulher volta a casa ou ganha poder?
Uma das bandeiras do BF tem sido o argumento de que dá poder às mulheres por lhes dar mensalmente um rendimento — em muitos casos, o primeiro de sempre.

O BF é entregue às mulheres porque Lula da Silva "é filho de uma família que se superou graças ao poder da mãe e que não é excepção no Brasil", explica a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, em entrevista. "Não tendo dinheiro, o que faço com ele? Invisto nos meus filhos. Essa prioridade está presente nas mulheres, então a chance que esse dinheiro seja gasto maioritariamente nas crianças é maior se for para a mulher. Dar à mulher significa que ela tem o direito de gastar onde quiser, mas a prioridade dela são os filhos, foi por isso que a gente tomou essa decisão."

Este é um aspecto também polémico. No escritório do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea), que dirige, em Brasília, a socióloga Guacira César de Oliveira critica o facto de o BF colocar as mulheres em situação de "regresso" ao lar. "O programa tem uma concepção neofamilista onde a mulher reproduz a ideia de responsabilidade maior no cuidado com as crianças. Ele é coerente com outras políticas públicas. E eu digo que ele é neofamilista porque a gente percebe uma orientação em diversas políticas públicas que colocam a mulher neste lugar do privado, do doméstico, da tarefa, do cuidado."

O BF está a responder, assim, à situação de pobreza das mulheres, mas não a permitir que "essas mulheres dêem o passo seguinte", considera.

No Brasil, é sobretudo às mulheres que cabe a tarefa de cuidar dos filhos e dos idosos, "a sociedade ainda é muito patriarcal", e a socióloga vê como imperativo a criação de infra-estruturas nestas duas áreas. "Se a mulher não tem uma creche onde coloque os filhos em tempo integral, a possibilidade que tem de estudar, de construir uma alternativa económica é muito menor. Há estudos no Brasil que demonstram que a existência de uma creche pode aumentar até 30% o rendimento de uma família mais pobre pela possibilidade que abre às mulheres de procurarem outras fontes de sustentação."

Um dinheiro que a mulher gere sozinha
Em casa de Noemi Oliveira, em Irará, houve um dia que entrou um trovão; a sorte é que foi na cozinha e não estava lá ninguém. Ketley, a filha de quatro anos, cabelos escuros em canudos e candidata a actriz aos olhos da mãe, decorou os passos desse dia.

As nuvens cinzentas transformaram-se em chuva tropical. Hoje também entra água pela porta da rua, também vão caindo pingos na sala. É por isso que Ketley se lembrou de nos contar pormenorizadamente a história do trovão, com direito a reprodução de diálogos do pai e da mãe. "A minha mãe estava sentada no chão. O meu pai: 'Levanta daí senão vai poder ter um acidente'", diz com ar de suspense.

Sentados no sofá, os pais riem do episódio transformado agora em peça de teatro, com direito a audiência que somos nós. Ela e o irmão são "muito espertos". Elyas, de sete anos, "aprendeu a ler no computador".

Aprendem também inglês: "Eles gostam muito, estudam na escola pública e não tem inglês, mas eles aprendem muita coisa devido ao computador. Eu acho que ajuda muito", diz Noemi, que gasta uns 50 reais (15,3 euros) por mês com Internet. Foi com a ajuda do BF que comprou o computador, uma escolha que não tem dúvidas de que foi acertada, porque "ah, meus filhos aprendem tanto...!", diz, com voz expressiva.

Fala com orgulho de Ketley, desembaraçada mesmo à frente de estranhos: sem vergonhas, nem timidez, ela tira um doce do frigorífico, oferece-nos outro, mais tarde deita o papel para o quintal. Ao contrário da vizinha do lado, Noemi tem frigorífico, mas também não tem água canalizada em casa; na cozinha não existe, por isso, lava-louça; tomar banho, com água aquecida no fogão, é de balde, e o mesmo para a retrete.

No quintal, num pequeno terreno que agora está com lama e lixo, há um reservatório de água com o qual se abastecem, e onde "cai água uma vez por semana".

A casa tem uma sala e dois quartos, sem portas, são uns panos a esconder o outro lado, e tem o mínimo de que precisam; Noemi fica constrangida em nos mostrar o seu quarto, "está muito desarrumado".

A viver em Irará desde os 16 anos, ela sonha "mais alto", sonha sair dali, "procurar uma vida melhor", sonha ir ter com a mãe a Goiás, porque Irará "é muito parado, trabalho não tem". "A perspectiva aqui — diz — é as pessoas saírem para ir trabalhar fora."

Tirando a agricultura, onde poucos querem trabalhar, restam os empregos na prefeitura. Ela própria trabalhou para a prefeitura durante três anos, "limpando a rua", ganhava 645 reais, muito mais do que aquilo que recebe do BF, por isso diz que preferia trabalhar a receber, “ai isso com certeza". "O BF não dá para pagar as contas. É uma ajuda para quem não tem, ajuda muita gente. Apesar de que tem muita gente que se acomoda, que prefere estar no BF do que arranjar um trabalho." Noemi não pensa assim: "É pensar pequeno e eu penso maior."

Quer investir na filha, quem sabe pô-la a estudar teatro, gostava de ter os dois filhos numa escola privada — a prima deles está numa "e aprende primeiro".

Aos 25 anos, mãe quando tinha 18 anos — mesmo assim tem amigas que foram mães aos 14 —, Noemi recebe o BF há sete e decidiu regressar agora à escola (ao ensino secundário), das 19h às 22h. Percebeu que muitas portas se fechavam cada vez que se candidatava a um emprego por não ter estudado o suficiente. Quer fazer o curso da Polícia Militar, quem sabe chegar a delegada ou um dia estudar Direito: "Já que é para sonhar, eu sonho bem alto." Estudar é a solução, "o que dá alguma coisa hoje é estudar", se "eu estudar estou ajudando os meus filhos, se eu fizer alguma coisa por mim, estou fazendo por eles".

O marido tem uma oficina que constrói portões, trabalha o dia todo, vem almoçar a casa. No dinheiro do BF ele não toca; acha bem ser Noemi a geri-lo, "é uma boa ajuda", para "as necessidades dela, para comprar os negócios dela".

Noemi comprou o computador, mas comprou também um armário, uma cama, comprou livros e histórias "para os meninos". "Só compro o que realmente preciso, vou economizar."

Do BF recebe agora uns 280 reais por mês, cerca de 87 euros. "Se tirassem o BF, acho que o povo [em Irará] ia passar fome — ou então ia todo o mundo embora." A votar nas próximas eleições "só não" vota "no cara que tirar o Bolsa Família".

Mapa que mostra onde está a pobreza
Ninguém garante que os rivais de Dilma, Aécio Neves (PSDB) ou Eduardo Campos (PSB), fossem acabar com o BF. Mas é um facto que o programa se tornou uma alta vantagem para o Partido dos Trabalhadores (PT).

Os dados enviados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e depois referidos pela ministra, fazem boas campanhas em todo o lado. Por exemplo, reduziu em 89% a extrema pobreza; entre 2002 e 2012, a proporção de brasileiros que vivem com menos de 70 reais caiu de 8,8% para 3,6%; o BF reduziu a mortalidade infantil em 58% devido à desnutrição e em quase 50% a mortalidade devido a diarreia.

"Nós estamos levando água, estamos levando comida, estamos levando médicos, escola, estamos dando o peixe, ensinando a pescar, dando a cana e vamos dar o que tiver que ser para mudar o Brasil", defende a ministra, que recusa a ideia de assistencialismo. "Como chamar de assistencialista um programa que está impedindo as crianças de morrer? Como chamar de assistencialista um programa que está levando qualificação profissional para o povo? Como chamar de assistencialista um programa que está induzindo a alteração do Estado, que sempre beneficiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres?"

O BF, defende, é um mapa que ajuda o Governo a identificar onde está a pobreza. Referindo-se ao desinvestimento da Europa no Estado social, Tereza Campello critica: "Ao contrário de muitos países desenvolvidos que construíram a história de rede social e de protecção e que hoje abandonam essa rede, nós não vamos abandonar os nossos objectivos de educação e de universalizar a saúde."

Ao bairro do Corte chegou, assim, Luís Alberto, cubano, do Mais Médicos, programa de recrutamento de médicos estrangeiros, muitos dos quais cubanos, que originou muitas críticas e reacções discriminatórias dentro da própria classe. A projecção nos media levou a que Luís Alberto nos tivesse recebido com desconfiança inicial — a mesma reacção que a sua chegada, em Outubro de 2013, provocou na população mas que, conta, depois se desfez. O trabalho a fazer no Corte passa muito pela prevenção, especialmente da dengue e de outras doenças contagiosas.

“Agentes comunitários vão a casa das pessoas e verificam factores de risco: acumulação de água nas zonas baixas, ingestão de água que não seja potável/fervida, alimentação adequada... De resto, desnutrição, por exemplo, é algo que não afecta esta população, que vive numa zona rural”, diz. Hipertensão, sim.

(Na altura em que falámos com Luís Alberto, a polémica sobre a deserção de médicos cubanos por causa de acordos de pagamento do seu ordenado entre os governos cubano e brasileiro ainda não tinha estalado. Luís Alberto, na altura, não quis falar do valor do seu vencimento, colocado numa conta em Cuba ao abrigo desse acordo.)

Ao sairmos do Corte ao fim do dia, voltámos a ver crianças na rua, e grupos a juntarem-se em casa uns dos outros. Desta vez, quando olham, acenam e dizem adeus. O carro segue aos solavancos. A chuva parou. O barulho dos pingos a caírem do telhado de casa de Noemi continua na memória à medida que nos afastamos.

A ilusão de "uma renda"
O bairro do Calafate, em Salvador, não tem direito a descrição na Wikipédia a partir de Portugal, mas Marta Leiro, fundadora do Colectivo de Mulheres do Calafate, tem muita história para contar. Por isso, o grupo criou um percurso de turismo comunitário, onde mostra desde a zona em que era colocada a lixeira a empreendedores que se dedicam ao vidro. Salvador, cidade com 2,7 milhões de habitantes, é a terceira mais populosa do Brasil. A malha urbana mostra isso mesmo.

No Rio de Janeiro, o Calafate chamar-se-ia favela, aqui é bairro social. As casas, encavalitadas, sobem pelo morro, encravam a passagem ágil nalgumas zonas. Quando nos vai buscar, o taxista diz que há quem não entre no bairro. Ainda no domingo 2 de Fevereiro, uma mulher levou do seu homem uma facada na cabeça. Mas o Calafate é mais do que isso, daí o tour.

O Lanches Margarida, onde vamos encontrar algumas das mulheres que gerem um negócio de salgadinhos, fica mesmo à entrada: este é o seu verdadeiro Bolsa Família, brincam.

Fundado há 22 anos, o colectivo tem como centro de acção a violência doméstica contra as mulheres, um problema que afecta uma brasileira a cada cinco minutos, sendo que em 80% dos casos o agressor é o companheiro, lê-se num grande cartaz na sede do colectivo, assinado por várias organizações como a ONU.

Todas as sete fundadoras foram vítimas de violência. Elba Lopes, 28 anos, dois filhos, ainda está com o marido que a violentou — mas teve de passar por denúncias à polícia. Com o tempo, conseguiu que ele mudasse de atitude. Foi encontrando força no grupo com que partilhava algo que a maioria das pessoas não percebe, diz: "Apanhava não porque gostava, apanhava porque gostava dele."

Entre o dinheiro que faz nos lanches e o BF (134 reais, dois filhos), Elba vai-se governando. O BF é apenas uma ajuda de custo e um dinheiro que chega no dia certo, todos os meses, mas que lhe permite, por sua vez, contrair dívidas.

"Quanto mais estou fazendo dinheiro, mais estou fazendo dívidas. É necessidade. Você quer uma roupa, não tem dinheiro; quer fazer uma unha, um cabelo, e tudo isso é [um] gasto..." Mas está longe de “empoderar” as mulheres, diz. "Não dá autonomia nenhuma. Trabalho com os lanches, vendo revistas e nunca chego ao tecto que o meu marido ganha." Se quisesse ajudar o seu dia-a-dia, o governo deveria, assim, como defende Guacira Oliveira, proporcionar maior e melhor acesso às escolas e alargar horários, porque há mães "que não têm com quem deixar os filhos", critica Elba. "Quando as escolas entram em greve, como é que as mães trabalham? Ao sábado, as mães trabalham, quem fica com os filhos? Chega a Dezembro [férias grandes], as creches param, quem fica com os filhos?"

Como não acredita no sistema de ensino público, Viviane Fernandez, por exemplo, usa o dinheiro do BF, 210 reais, para pagar uma escola privada às duas filhas, de 10 e 12 anos. Primeiro porque os professores não faltam, nem fazem greve; depois porque o ensino é melhor. Sonha que um dia elas "virem doutoras". "Podia pegar o BF e fazer como muitas mães fazem, pega e vai para um bar beber, vai para a praia... Por mais dificuldades que eu passe, penso no bem delas, em pagar a escola para serem alguém na vida."

Viviane, com 32 anos, dois irmãos que já morreram por terem escolhido o caminho errado, separada do marido há sete anos porque ele lhe batia, pensa que a protecção que a escola privada dá é importante e nisso o BF veio melhorar a sua vida. "A minha filha tem 12 anos e quer ainda brincar com bonecas. Essas meninas que estão na escola do governo não querem brincar com bonecas. Isso é positivo porque ela não pensa em namorar, não pensa em ter relações, ela está vivendo a infância dela, e muitas que moram aqui não vivem mais. Há meninas de 11 anos que já têm filhos..."

As três moram com a família de Viviane, vão a casa da tia e da avó comer, não pagam despesas altas, e é por isso que sobrevivem. O BF ajuda, mas "não dá para ficar dependente de dinheiro que é tão pouco".

Viviane é bastante crítica e diz que o seu voto não será de Dilma: para ser, a Presidente teria de melhorar o programa, aumentando o valor e arranjando cursos de graça nas escolas, por exemplo. "Dilma faz muita propaganda do BF, diz que ia tirar as pessoas da pobreza. Mas é mentira. O povo continua pobre. Para tirar o povo da pobreza ela tinha que pagar um salário mínimo, aí sim ia tirar o povo da pobreza."

Viviane e Marta Leiro conhecem pessoas que vivem só do BF, mas ficam espantadas: como é que conseguem? Marta Leiro refere também casos em que os homens batem nas mulheres ou nos filhos para ficar com o cartão do BF. Esta mulher que já recebeu vários prémios pelo seu trabalho no colectivo do Calafate, onde sempre viveu, é céptica sobre se, de facto, o BF é um programa que “empodera” as mulheres. "A questão financeira proporciona o empoderamento, dá um sentimento de autonomia, mas sinceramente não sei como as mulheres sobrevivem com um BF de 102 reais..."

As assistentes sociais que não a ouçam, diz, mas ela acha que o BF "é uma política que não é de incentivo", antes cria "uma certa passividade". "Ninguém quer perder esses cem reais, e por isso às vezes não querem carteira assinada (contrato). As mulheres ficam mais presas, [o BF] deixa-as submissas a uma política que não está trazendo autonomia para a mulher."

Trata-se, apenas, de um paliativo, que "não diminui a desigualdade social, não diminui a questão da pobreza entre as mulheres", pelo contrário, "faz com que as mulheres vivam num mito, numa fantasia de ter uma renda [rendimento]" e "gera mais endividamento". Sentada no terraço de sua casa, ao lado do pequeno negócio que montou e que gere com as outras mulheres, Marta Leiro protesta: "O índice de consumo entre as classes mais pobres tem crescido no Brasil, e o Governo apresenta isso (como se) a gente estivesse com mais poder de compra. Mas não é isso que apresenta um país menos pobre: aquilo que é nosso direito — a educação, a saúde — não temos."

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