Angola é o país onde diferenças entre riqueza natural e bem-estar social são mais visíveis

Kofi Annan preside um painel de peritos que analisou o progresso em África e traça comparações com países de outros continentes. Em Angola, a mortalidade infantil continua a ser das mais elevadas no mundo.

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Metade da população de Luanda vive na pobreza não longe dos hóteis de luxo e das sedes das multinacionais que se instalaram nos últimos anos junto à baía Miguel Madeira

Angola é um país de duas ou múltiplas realidades. O Africa Progress Panel (APC), presidido por Kofi Annan, centra-se nas duas que contribuem para aquilo que diz ser um gritante paradoxo – por ser o país que ilustra "de forma mais poderosa a divergência entre riqueza de recursos e bem-estar social", conclui o Africa Progress Report 2013, um estudo publicado esta sexta-feira, como todos os anos em Maio, desde 2008.

Riqueza natural e desenvolvimento humano estão em extremos opostos de uma escala que junta dados de estudos internacionais e de relatórios do Banco Mundial, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ou Banco Mundial, entre os quais os relativos a 2012. O relatório, intitulado Equidade nos recursos – Em prol das riquezas naturais de África para todos, é obra dum painel de dez influentes personalidades liderado pelo ex-secretário-geral da ONU e Nobel da Paz Kofi Annan.

Estão lá, entre outros, Michel Camdessus, ex-director-geral do FMI; Olusegun Obasanjo, antigo Presidente da Nigéria; Graça Machel, ex-primeira dama de Moçambique e mulher de Nelson Mandela, fundadora do grupo Whatana Investments ou da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade em Moçambique; o músico irlandês Bob Geldof ou o fundador da Transparency International Peter Eigen.

China ultrapassada por Angola
O documento de 120 páginas conclui que a desigualdade se mantém, por ausência de políticas que a combatam, e impede que o crescimento em países ricos em recursos reduza a pobreza, não só em Angola, mas também na Nigéria, Congo-Kinshasa ou Guiné-Equatorial. Angola tem um dos padrões mais desiguais de distribuição do rendimento e é citado como “um dos exemplos mais acabados” de um cenário em que a actividade das empresas do Estado se esconde por trás de um sistema financeiro opaco, não cumpre regras mínimas de transparência e beneficia figuras públicas ou políticas.

O país lusófono, um dos mais influentes da região da África Austral, sobressai igualmente pelos fracos índices de desenvolvimento. A taxa de mortalidade infantil, até aos cinco anos, está no topo da lista: é a oitava maior do mundo, com 161 mortes em 1000 crianças por ano, o que representa 116 mil mortes todos os anos.

E isto, lembra o documento, quando Angola é o segundo país exportador de petróleo da África subsariana e o quinto produtor mundial de diamantes e está entre o terço (de países) que mais cresceram entre 2000 e 2011 no mundo. Em 2012, ultrapassou a taxa de crescimento da China. Na última década, cresceu a uma taxa média de 7% e o rendimento médio mais do que duplicou. O efeito foi praticamente nulo na forma como a maioria da população continua a viver. “Enquanto a elite angolana usa o rendimento do petróleo para comprar activos no estrangeiro, em Angola as crianças passam fome”, nota o relatório. A subnutrição explica um terço das mortes de crianças, esclarece.

Luanda dispõe de reservas de petróleo suficientes para manter nos próximos 21 anos os actuais níveis de produção, que rendem anualmente entre 60 e 70 mil milhões em receitas de exportações. Mas cerca de metade dos seus dez milhões de habitantes continua a viver com menos de 1,25 dólares por dia (um pouco menos de um euro).

“A elite de Angola não beneficiou apenas da oportunidade de enriquecer. Também se empenhou assiduamente em garantir que os rendimentos do petróleo pudessem servir os seus interesses”, lê-se no capítulo A grande divergência.

E dá exemplos: “Enquanto as casas da elite frente ao mar dispõem de electricidade e água altamente subsidiadas pelos rendimentos do petróleo, os bairros para lá da [Avenida] Marginal não têm luz. E algumas das pessoas mais pobres de Angola são obrigadas a comprar água, a preços elevados, a comerciantes privados.”

Angola detém dívida pública portuguesa
A riqueza extrema que financiou uma guerra civil de 27 anos está agora a financiar um boom de construção em Luanda e outros centros urbanos, por um lado, e o investimento no estrangeiro, por outro. Portugal é o destino citado. Empresas estatais angolanas ou elementos da elite estão a comprar empresas (ou participações) em Portugal “o antigo colonizador fortemente endividado”.  Exemplos disso são as participações no Millennium BCP ou na Galp, não citadas directamente mas referidas ao PÚBLICO pelo gabinete de imprensa do APC que explicou que a referência feita no relatório de que Angola detém agora dívida pública portuguesa, é através do Millennium BCP.

Essas participações são da empresa petrolífera Sonangol, tida como exemplo de falta de transparência. A Sonangol está entre as oito companhias estatais no mundo que suscitaram preocupação por não aplicarem medidas que garantam a transparência. O relatório lembra também que a maioria do petróleo exportado de Angola para a China passa pelo Fundo Internacional da China em termos não tornados públicos.

A criação de condições propícias para a corrupção, em ligação com empresas ou grupos estrangeiros, privados ou públicos, é um dos traços comuns a países ricos em recursos em África. Há outros. Como o de ser nestes países que estão dois terços das crianças que não vão à escola naquele continente – o que representa uma em três do total do mundo. Ou o de serem, em geral, lugares de paradoxos.

No caso de Angola, um paradoxo que coloca a ostentação de um dos lugares mais caros do mundo, junto à baía de Luanda, e os seus condomínios privados, clubes e hotéis exclusivos que servem a elite do país e os executivos das multinacionais com presença em Luanda, a conviver ao lado de bairros de lata sem água ou electricidade, onde cabe metade da população da capital, descreve o relatório de Kofi Annan. A imagem não é de agora. Mas o que questiona este painel é como sobrevive este paradoxo a uma década de forte e rápido crescimento.

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