Soldado cativo no Afeganistão "falava aos guardas do Natal e da Páscoa" e festejava com eles

Bowe Bergdahl já está a recuperar na Alemanha. Taliban contam que bebia chá verde, aprendeu a falar línguas locais e jogava badminton com os carcereiros, mas nunca renegou a identidade

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Bergdahl foi capturado a 30 de Junho de 2009 AFP

Já no helicóptero, num prato de papel, Bowe escreveu: “SF?”. “Sim”, respondeu um dos militares que tinham acabado de o recolher. Eram SF, das forças especiais. “Há muito tempo que andamos à tua procura”, acrescentou. Nessa altura, o sargento norte-americano que passou quase cinco anos nas mãos dos taliban afegãos irrompeu em lágrimas.

O curto diálogo, contado ao Washington Post por fonte não identificada do Departamento de Defesa é dos poucos pormenores revelados sobre a libertação, no sábado, num lugar não identificado no Leste do Afeganistão, de Bowe Bergdahl, agora com 28 anos. O único militar americano desaparecido no país tinha sido capturado no exterior da sua base, em circunstâncias desconhecidas, a 30 de Junho de 2009, dois meses depois de ter chegado ao Afeganistão.

Os militares que o resgataram, “algumas dezenas”, chegaram por via aérea ao local indicado e ficaram apenas o tempo suficiente para cumprirem a missão, que decorreu sem incidentes com uma vintena de talibans que acompanhavam o prisioneiro. “Felizmente… não houve tiros, não houve violência”, explicou o secretário americano da Defesa, Chuck Hagel. Para terem Bergdahl de volta, após avanços e recuos em contactos que terão começado em 2010, e da mediação indirecta do Qatar nesta última fase, os Estados Unidos aceitaram enviar para este emirado cinco dirigentes taliban que passaram mais de uma década na prisão de Guantánamo.

O sargento está de saúde e tão bem quanto o permitirá a experiência que acaba de viver. Depois de uma curta passagem pela base de Bagram foi enviado para um hospital militar americano de Landstuhl, na Alemanha. Aí “começará o processo de readaptação, terá tempo para contar a sua história, descomprimir e começar a reatar os laços com a família”, informaram responsáveis do Exército. Mais tarde deverá ser transferido para San Antonio, no Texas.

Os pais, Bon e Jani Bergdahl, ao lado de quem o Presidente Obama deu a notícia ao país, vão ter de esperar para ouvir o filho falar do tempo de cativeiro, que terá sido passado na maior parte do tempo em áreas tribais entre o Paquistão e o Afeganistão. Eles e a comunidade de Hailey, a terra onde nasceu, que no sábado, quando foi conhecida a notícia irrompeu em festejos.

Para já, foram os taliban que mais revelaram sobre os últimos anos de Bowe, um natural do Idaho. Um comandante paquistanês da rede Haqqani, um facção taliban, que o manteria cativo, traçou à AFP o retrato de um quotidiano quase normal, de um homem que soube adaptar-se – bebia muito chá verde, aprendeu a falar dari e pasthum, jogava badminton com os carcereiros – mas nunca renegou a identidade. Os guardas, disse, quiseram ensinar-lhe os princípios do islão e forneceram-lhe livros religiosos, mas ele fazia questão de celebrar as festas cristãs. “Não falhava uma. Começava semanas antes a falar aos guardas do Natal e da Páscoa e festejava-as com eles.”

Mullah Omar reclama vitória
Imtiaz Gul, especialista paquistanês em movimentos rebeldes da região,  disse à agência que um quotidiano assim se compreenderá pelo facto de  o militar norte-americano ser “um activo de muito valor”. A troca por dirigentes taliban confirma essa valia. Todos os cinco tiveram papéis de destaque no regime taliban que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001. Sobre eles recaem acusações de crimes muito graves.  

Três dos envolvidos na troca ocuparam cargos ministeriais: Mohammad Fazl, que ocupou a pasta de vice-ministro da Defesa e foi acusado da morte de milhares de muçulmanos xiitas; Khirullah Khairkhwa, ex-ministro do Interior e governador de Herat, que teria relações directas com Osama bin Laden; e Abdul Haq Wasiq, vice-ministro das Informações, a quem é atribuída importância na formação de alianças com outros grupos islamistas para combater forças dos EUA e da coligação internacional no Afeganistão. Os outros dois são: mullah Norullah Noori, que foi comandante militar e governador e era acusado de envolvimento em mortes de xiitas; e Mohammad Nabi Omari, que desempenhou diferentes funções de liderança, entre as quais a de chefe da segurança, e alegadamente esteve envolvido em ataques às forças internacionais.

O mullah Omar, chefe supremo dos taliban afegãos considera a troca uma “grande vitória”. Para Obama vitória foi recuperar o único soldado desaparecido no Afeganistão, o que implicou aceitar como boas as garantias do Qatar, de que os até agora detidos em Guantánamo, aos quais as famílias se juntarão, ficam sujeitos a vigilância e restrições de movimentos que garantam a “segurança nacional” dos EUA, incluindo a proibição de viajarem durante um ano. Mas os republicanos vêem o acordo com reservas. O presidente da Câmara dos Representantes, Mike Rogers, declarou-se “perturbado” por se ter “negociado com terroristas”. Preocupados estão também responsáveis afegãos. “Serão muito perigosos, têm ligações a organizações terroristas”, disse um alto responsável dos serviços de informações afegão à Reuters.

Os contactos, esporádicos, para a libertação terão começado em finais de 2010. Foram tendo avanços e recuos, devido a divisões entre facções taliban, a desconfiança das partes e a receios do governo afegão. Só nos últimos meses, disse à Reuters fonte diplomática, os taliban terão dado sinal definitivo da disponibilidade para a negociação mas não para conversações directa. A fase final de contactos terá começado em Janeiro depois da confirmação, por vídeo, de que Bowe estava vivo.

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