Al-Qaeda transforma conflito sírio numa guerra verdadeiramente regional

Os radicais aproveitaram o vazio de poder e tomaram vastas zonas do Norte da Síria. Agora, fazem o mesmo no Ocidente do Iraque.

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O Governo de Bagdad diz estar a preparar uma grande ofensiva para recuperar Falluja Sadam El-Mehmedy/AFP

A Al-Qaeda já se chamou muitas coisas, já dissemos que era apenas um rótulo, pronto a usar, uma ideia. Às vezes, os nomes importam. Há uns anos, a principal ameaça do jihadismo internacional no Médio Oriente vinha da autoproclamada Al-Qaeda na Península Arábica, primeiro com base na Arábia Saudita, depois no Iémen. Agora, como os sírios bem sabem, o rosto do terror chama-se a si próprio Estado Islâmico no Iraque e no Levante (ISIS) e tem como objectivo erguer um Estado regional, o califado de que falava Bin Laden, estendendo-se pelo menos das margens iraquianas do Eufrates à costa mediterrânica do Líbano.

O Levante, termo com que os franceses designavam o Mediterrâneo Oriental, é, na verdade, a Síria histórica, e inclui ainda parte do Sul da Turquia (Hatay), Jordânia, Palestina e Israel – por vezes usa-se a expressão como abrangendo também o Chipre e zonas do Egipto. O ISIS controla partes do Norte da Síria e tem lançado ataques no Líbano e no Iraque. Agora, assumiu o controlo de uma cidade iraquiana inteira, Falluja, e de partes de Ramadi, capital da província de Anbar, no ocidente do Iraque, entre Bagdad e a fronteira síria.

Talvez se perceba melhor a partir deste momento o aviso, tantas vezes repetido, de que o conflito na Síria não tinha como não se tornar num conflito regional, com implicações bem para lá das fronteiras do país que Bashar al-Assad herdou do país, Hafez.

As revoltas árabes do início de 2011 aconteceram porque tinham de acontecer, não foram parte de uma conspiração externa, como diz Assad. Mas aconteceram num dado momento e num dado contexto. No ano em que os Estados Unidos acabaram de retirar do Iraque, num momento em que Washington quis deixar de se envolver tão directamente em conflitos longínquos. Assad percebeu isso mesmo, os radicais estrangeiros que fizeram do Iraque ocupado o seu campo de batalha contra os infiéis ocidentais e seus aliados árabes também.

O cisma entre o islão sunita e xiita, que o grupo fundado por Bin Laden na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão tanto explorou, só podia agudizar-se. Se no Iraque, Saddam Hussein era o rosto de um regime árabe sunita que descriminava a maioria árabe xiita da população, Assad é um alauita (ramo do xiismo) que governa um país de maioria árabe sunita.

Assad jogou a carta do conflito étnico, quis pôr uns contra os outros, os jihadistas agradeceram e aproveitaram. Entraram na Síria dizendo-se prontos a morrer para derrotar um regime infiel e aterrorizam toda uma população, como já tinham feito em partes da província iraquiana de Anbar no tempo dos norte-americanos. Os estrangeiros ainda lutaram ao lado dos rebeldes sírios – alguns ainda lutam – mas depressa se tornou óbvio para a oposição síria que vencer a guerra do futuro do país passará também por expulsar estes homens.

Na sexta-feira, foi anunciada a formação de uma nova aliança, o Exército dos Mujahedin (como eram chamados os combatentes que partiram para o Afeganistão e lá combateram os soviéticos nos anos 1980), que integra três grandes grupos de rebeldes e conta com o apoio da oposição política síria. O seu grande objectivo é derrubar o ISIS, particularmente activo em duas províncias do Norte, Idlib e Alepo.

Ajuda sem tropas
Em reacção aos desenvolvimentos no Iraque, os EUA reafirmaram o seu apoio ao Governo xiita de Nouri al-Maliki, dizendo em simultâneo que nunca voltarão a colocar tropas no terreno. Questionada sobre se a força do ISIS não é uma consequência directa do desinvestimento norte-americano no Iraque após a retirada, a porta-voz do Departamento de Estado, Marie Harf, defendeu que os EUA fazem tudo o que podem. “Sejamos claros sobre quem é responsável pela violência – são os terroristas que estão por trás da violência.”

Nada aqui é simples, nem mesmo o apoio a Maliki. A autoridade do Governo central não é reconhecida por todos os iraquianos. Aliás, os últimos desenvolvimentos foram desencadeados por uma operação militar para desmantelar acampamentos de protesto contra Maliki. A brutalidade da operação terá levado parte da população de Falluja, nomeadamente membros de milícias inicialmente formadas pelos EUA para combater os radicais estrangeiros, a lutar contra as forças oficiais, colocando-se ao lado dos islamistas que declararam a cidade seu território depois das orações de sexta-feira.

O Governo diz que está a preparar uma grande ofensiva para recuperar Falluja. Mesmo que o consiga, do ponto de vista militar, se puser em marcha uma operação que não distinga os radicais dos civis iraquianos arrisca-se a enfurecer ainda mais a população.

Alianças regionais
Nas últimas semanas, o mesmo ISIS reivindicou vários ataques no Líbano, incluindo um atentado suicida numa zona controlada pelos xiitas do Hezbollah, aliados de Assad, financiados por Teerão.  

A aliança xiita é esta, vai de Teerão a Beirute, passando por Bagdad e Damasco. Quem mais a teme é a Arábia Saudita, que é por isso o maior financiador dos opositores de Assad. Muito do que se tem passado no Iraque e na Síria nos últimos tempos é, na verdade, consequência de uma guerra por procuração permanente entre estes dois jogadores que disputam a hegemonia regional.

“Penso que estamos a assistir a um momento de viragem, e pode ser um dos piores da nossa história”, comentou ao jornal The New York Times Elias Khoury, romancista libanês que viveu no seu país durante os 15 anos da guerra civil. “O Ocidente não está lá, e estamos nas mãos de dois poderes regionais, os sauditas e os iranianos, cada um fanático à sua maneira.”
 
 
 
 

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