Al-Qaeda ou Columbine, o que terá inspirado a violência dos Tsarnaev?

O 11 de Setembro impossibilitou aos muçulmanos, sobretudo aos jovens, a integração nos EUA. E a América oferece modelos inquietantes para canalizar esse sentimento de estar deslocado

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Memorial às vítimas do massacre no liceu de Columbine, em 1999 EFF MITCHELL/REUTERS

Na noite em que Dzhokhar Tsarnaev, de 19 anos, foi capturado pela polícia num subúrbio de Boston, enquanto a América entrava em modo celebratório ("U-S-A! U-S-A!"), um Presidente circunspecto fez uma breve declaração ao país, lembrando que ainda havia "muitas perguntas por responder".

"Por que é que dois jovens que cresceram e estudaram aqui, como parte das nossas comunidades e do nosso país, recorreram a tal violência?", perguntou Obama, soando genuinamente perplexo.

A América vê-se a si própria como a grande terra da assimilação, a mais bem sucedida do mundo. Minorias marginalizadas ou excluídas na Europa tornaram-se americanas. Só na América é que a dualidade identitária- afro-americanos, asiático-americanos, muçulmano-americanos - é abraçada como a norma.

Mas a pergunta de Obama sugere que, no caso dos dois alegados autores dos atentados na maratona de Boston, algo terá falhado nesse processo de assimilação. E nos dias seguintes, conectando pedaços de informação dispersa (provenientes da Internet, dos testemunhos pessoais de amigos e familiares, de documentos oficiais), a imprensa americana começou a compor o retrato-robô de dois jovens deslocados, suspensos no limbo entre duas culturas - América e Tchetchénia ou América e Islão.

Os dois irmãos eram muçulmanos de origem tchetchena. A família Tsarnaev recebeu asilo político nos Estados Unidos há uma década, por causa do conflito entre a Tchetchénia e a Rússia. O mais velho, Tamerlan, tinha 15 anos e o mais novo, Dzhokhar, oito.

Mas Dzhokhar também era um cidadão americano desde Setembro do ano passado. E Tamerlan tentara naturalizar-se americano, mas uma ocorrência de violência doméstica no passado não o permitira ("Na América, não se pode tocar numa mulher", disse o seu pai, na Rússia, ao New York Times). Em 2009, um fotógrafo de Boston fez uma série de fotografias sobre Tamerlan Tsarnaev intitulada Disposto a lutar boxe por um passaporte: Tamerlan, um pugilista, esperava ganhar suficientes campeonatos nacionais para poder qualificar-se para a equipa olímpica dos EUA e naturalizar-se. As legendas das fotografias sugerem que Tamerlan não sentia afinidade com a cultura e modo de vida americanos. "Não tenho um único amigo americano. Não os compreendo", disse.

"A situação do irmão mais velho não é assim tão fora do comum, ser alguém que imigra durante a adolescência e nunca se sente parte da nova sociedade", diz ao PÚBLICO Philip Kasinitiz, professor de Sociologia na City University of New York (CUNY), especializado no estudo de filhos de imigrantes. "Há uma abundância de casos que mostram que esse período, em que a identidade adulta ainda não está formada, é realmente problemático em termos de ajustamento." Contudo, o sociólogo adverte que é preciso evitar fazer generalizações. "Há imensos jovens que imigram para os Estados Unidos quando são crianças e não cometem actos destes."

O caso dos muçulmanos
Mas a trajectória da minoria muçulmana nos Estados Unidos é particular, porque está dividida em dois momentos claramente distintos: antes e depois dos ataques de 11 de Setembro. "Centenas de milhares de muçulmanos emigraram para os Estados Unidos do Médio Oriente e do Sul asiático nas décadas de 1970, 80, 90, sem problemas", nota Akbar Ahmed, professor de Estudos Islâmicos na American University, em Washington. "Eles vieram como médicos, engenheiros, empresários e adaptaram-se perfeitamente. Quer dizer, quando uma pessoa vai ao dentista não pergunta, "Você é paquistanês?" - uma pessoa vai ao dentista, ponto. Ele podia ter acabado de aterrar e ter encontrado um bom emprego, um bom bairro para viver, comprado uma boa casa, está perfeitamente integrado. E é então que acontece o 11 de Setembro e subitamente o público americano pergunta: "Quem são estes muçulmanos?" De repente, há imensas perguntas sobre os muçulmanos. A atmosfera é hostil."

Akbar Ahmed, que em 2010 publicou um livro sobre a experiência dos muçulmanos nos Estados Unidos, Journey Into America, nota que há um "pequeno grupo de muçulmanos, especialmente jovens" que sentem dificuldades em ser completamente aceites como americanos depois do 11 de Setembro. "Enquanto católicos e judeus chegam à América e dizem "queremos ser americanos" - os judeus não dizem a si próprios: "Ainda serei russo? Quero voltar para a Rússia um dia" - depois do 11 de Setembro, rapazes muçulmanos, nascidos aqui, educados aqui, sentem-se subitamente ambíguos em relação à sua identidade", explica Akbar Ahmed.

Uma das razões para isso é a islamofobia gerada pelo 11 de Setembro, nota o professor da American University, que persiste até hoje - "mesmo agora, vê-se gente na televisão a atacar o Islão..."

"Um jovem muçulmano criado nos EUA pensa: "Esperem aí. Vocês não podem dizer estas coisas sobre os afro-americanos, ou sobre os judeus, hindus, cristãos, mas vale tudo quando somos nós?! Tudo sobre nós é ridicularizado e alvo de insulto. Quando apanhamos um avião, as pessoas suspeitam de nós, os nossos nomes são verificados dez vezes sempre que somos atendidos por alguém..."

Uma sondagem conduzida no ano passado pelo Berkley Center for Religion, Peace & World Affairs, da Universidade de Georgetown, entre jovens universitários (18-24 anos), mostra que quase metade (47%) considera que ser muçulmano é incompatível com os valores e modo de vida americanos.

"Costumo dizer que esses jovens muçulmanos estão suspensos entre dois mundos. E esse é um território muito perigoso para se estar", diz Akbar Ahmed. "No caso dos dois irmãos que cometeram os atentados em Boston, eles já não são tchetchenos mas também não se sentem americanos."

Nada disto explica, só por si, o que levou dois irmãos de 26 e 19 anos a fabricar bombas e a fazê-las explodir junto à meta da histórica maratona de Boston, há duas semanas. Especialistas no estudo do terrorismo notam que na maioria dos casos os terroristas são motivados por uma combinação de motivos ideológicos, religiosos e pessoais - problemas familiares ou dificuldades profissionais, por exemplo.

Identidade: muçulmano
O historial de Tamerlan Tsarnaev na Internet aponta para uma atracção pelo radicalismo islâmico, mas não se conhecem ainda quaisquer ligações a grupos ou organizações extremistas. Até ver, tudo indica que os dois irmãos são terroristas autodidactas. Dzhokar, o único dos irmãos que sobreviveu à perseguição policial encetada pouco depois da divulgação das primeiras imagens dos suspeitos pelo FBI, terá dito esta semana aos seus interrogadores que os ataques foram motivados por uma oposição às guerras do Iraque e Afeganistão.

Akbar Ahmed tem dúvidas sobre essa explicação. "A política externa americana não tem nada a ver com pessoas a correr uma maratona. Eles dizerem "como não gostamos da política externa americana, vamos matar pessoas na maratona" não faz qualquer sentido", diz.

Mas Brian Levin, criminologista e director do Center for the Study of Hate & Extremism da California State University, sugere uma relação entre as duas coisas. "Vocês atacam a nossa gente, nós atacamos a vossa."

Não é a primeira vez que indivíduos sem um historial de violência e com uma longa experiência de vida nos Estados Unidos ou cidadania americana estão por detrás de actos de terrorismo: o planeado atentado no Metro de Nova Iorque em 2009, o tiroteio na base militar de Fort Hood, no Texas, no mesmo ano, e o ataque falhado a Times Square em 2010 são exemplos recentes.

"Os jihadistas dizem que, para se ser um bom muçulmano, não se pode ser mais nada. Não se pode ser americano também, nem mesmo egípcio ou iraquiano. A identidade primordial e absoluta é ser muçulmano, apenas", diz Brian Fishman, autor de uma série de estudos sobre terrorismo e a Al-Qaeda na New America Foundation, um think tank de Washington.

A noção de uma identidade puramente islâmica pode ser muito atraente para alguém que sente um vazio e isso é geralmente um dos factores que faz com que as pessoas se voltem para o extremismo islâmico.

Muitas vezes, nota Brian Fishman, também existe o sentimento de culpa por terem uma vida confortável nos EUA enquanto os seus familiares vivem em circunstâncias diferentes, normalmente mais duras, num lugar distante. Se se juntar a isso factores pessoais, eis todos os ingredientes habituais numa receita de radicalização islâmica. "Normalmente, é uma combinação dessas três coisas, mas a quantidade de cada é difícil de estabelecer e difere de indivíduo para indivíduo", nota Brian Fishman.

Alienados da sociedade
Mesmo entre os dois irmãos Tsarnaev o caminho para o extremismo pode ter sido diferente. Os amigos do mais novo mostraram-se incrédulos quanto ao seu eventual envolvimento nos atentados por parecer incompatível com a sua personalidade: Dzhokhar, descrevem, é sociável, calmo, tão americano como qualquer um deles... Uma das teorias que ganhou forma nos últimos dias é a de o Tsarnaev mais novo ter sido influenciado ou mesmo arrastado pelo irmão mais velho.

Podem existir dinâmicas diferentes dentro do mesmo grupo de extremistas, diz Brian Fishman. "Alguns são verdadeiros ideólogos; alguns são pessoas com pouca vontade própria que são conduzidas por esse ideólogo; alguns estão interessados mas não sabem o que estão a fazer ou estão aborrecidos e precisam de liderança. Nem toda a gente no grupo terá o mesmo percurso."

Philip Mudd, antigo vice-director do Centro Contra-terrorista da CIA, dizia há dias, na CNN, que os atentados de Boston tanto evocam o terrorismo da Al-Qaeda como o tiroteio no liceu de Columbine em 1999.

"A questão é porque é que, subitamente, jovens alienados cometem actos de inexplicável violência que ninguém podia antecipar no seu carácter?", resume Philip Kasinitiz ao PÚBLICO. "Os rapazes por detrás do tiroteio em Columbine também se sentiam deslocados e alienados da sociedade. É verdade que Tamerlan Tsarnaev parecia sentir-se profundamente alienado pela sociedade americana e terá encontrado uma ideologia para abrigar essa violência. Mas isso não quer dizer que essa ideologia o tenha inspirado", diz o sociólogo.

"Não sabemos. Não parece que ele tenha tido qualquer ligação directa com radicais islamistas para além do facto de os admirar e ter dito algumas coisas no Facebook. Portanto, como é que isso é diferente de alguém que decide matar uma série de pessoas porque a música do Marilyn Manson lhe está a dizer para fazer isso? Como é que isso é diferente de qualquer outro adolescente alienado que comete um acto de violência inexplicável?"

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