Acusação a Jiang Zemin põe em xeque a jurisdição universal em Espanha

Proposta de lei do Partido Popular restringe drasticamente a competência dos tribunais espanhóis para julgar crimes contra a Humanidade cometidos no estrangeiro. Será o fim da era Garzón.

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Jiang Zemin Xinhua/AP

É a história de uma dupla colisão, entre instituições espanholas e entre a Espanha e a China. No domingo, o juiz de instrução Ismael Moreno, da Audiência Nacional, assinou um mandado de captura internacional contra Jiang Zemin, antigo Presidente da China, e quatro outros ex-líderes chineses por crimes contra a Humanidade no Tibete, nos anos 1980-90. Na segunda-feira, o Parlamento começou a debater uma proposta do Partido Popular (PP), no governo, que visa reduzir ou mesmo esvaziar a aplicação da doutrina da jurisdição universal, que está na base daquela decisão. A China pediu “esclarecimentos” a Madrid e a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros advertiu que a decisão afectará as relações bilaterais.”

Para lá do potencial conflito hispano-chinês e do braço-de-ferro entre o governo, uma parte da magistratura e a oposição, há também divergências dentro da Justiça. O juiz Moreno e o Ministério Público discordaram da ordem de detenção por “falta de elementos bastantes”. Mas a instância superior, a Quarta Sala Penal da Audiência, presidida pela juíza Ángela Murillo, aceitou as teses do Comité de Apoio ao Tibete — o autor da queixa — e ordenou a Moreno que passasse o mandado de detenção. Este conflito interjudicial, que tem alguma coloração política, dura há meses e tem agora o seu desfecho provisório. A investigação a Jiang Zemin remonta a 2006. 

O legado de Garzón
A proposta de lei do PP, apresentada no Parlamento no dia 23 de Janeiro, limita drasticamente a jurisdição universal penal, o que equivalerá a arquivar este e outros processos. Já em 2009, o governo socialista de Rodriguez Zapatero, com o apoio do PP, limitara a competência universal, aparentemente para evitar graves conflitos com Israel e com os Estados Unidos.

Alfonso Alonso, porta-voz do PP no Parlamento, explicou que a reforma visa eliminar a possibilidade de actuação da justiça espanhola fora do território nacional. A jurisdição universal, tal como é praticada em Espanha, “não é eficaz, (...) promete muito e só cria conflitos diplomáticos”, disse. O esvaziamento da jurisdição universal produziu já reacções negativas em meios judiciais, em ONGs como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch, que falam em “retrocesso” e na interferência de interesses políticos na justiça. O Parlamento aprovou as alterações à lei na noite deste terça-feira, apenas com os votos favoráveis do PP.

Na Espanha, o juiz Baltasar Garzón levou ao limite — recorrendo a expedientes na interpretação da lei — o princípio da jurisdição universal. Este permite a um tribunal nacional julgar estrangeiros por crimes de genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra cometidos em qualquer parte do mundo. Garzón foi acusado de passar por cima das diversas legislações e das jurisdições nacionais — como foi o caso do Chile durante a sua operação contra o ditador Augusto Pinochet.

A oportunidade de limitar a jurisdição internacional terá sido proporcionada pelo zelo judicial. Os tribunais espanhóis não têm qualquer possibilidade de fazer executar as suas decisões perante os dirigentes chineses. Outras investigações, envolvendo designadamente Hu Jintao, o sucessor de Jiang Zemin, estão em curso. São processos simbólicos.

Para lá do frequente conflito entre razão judicial e razão diplomática, há neste caso um argumento material suplementar: a dependência económica da China. O PP não a invoca, mas o The New York Times lembrava nesta terça-feira que a China é um importante investidor em Espanha, possui uma grande parte da dívida espanhola e é um mercado vital para as suas exportações, sobretudo as alimentares. Peter Spiro, um professor americano de Direito Internacional, disse ao jornal que a jurisdição universal é uma doutrina importante mas que deve ser aplicada com prudência, pois se alarga excessivamente os seus alvos depressa perde um consenso político mínimo.

O “caos belga”
A Bélgica foi dos primeiros países a adoptar, em 1993, a competência universal. Uma década depois, rebentou o “caos judicial”. O primeiro-ministro israelita, Ariel Sharon, foi processado por crimes contra os palestinianos na invasão do Líbano de 1982. A seguir, israelitas processaram Arafat por terrorismo. Por fim, iraquianos quiseram julgar George W. Bush e o general Colin Powell. “A Bélgica pôs termo a este circo jurídico revogando a legislação”, anota o analista britânico Jonatham Eyal. “Os desgastes são graves: ao exagerarem na jurisdição universal, os militantes dos direitos humanos põem em causa o direito internacional, o que é contrário à sua intenção original, (...) atrasando a diplomacia e complicando a gestão dos conflitos internacionais.”

Uma parte destes conflitos poderia ser resolvida através do recurso ao Tribunal Penal Internacional, de Haia, criado pela ONU em 2002. Mas o TPI só tem competência para julgar crimes cometidos após essa data. De resto, países como os Estados Unidos, a China e muitos outros não aderiram ao tratado. Ou seja, não abdicam da soberania legislativa e judicial.

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