Activistas anti-ocupação russa raptados na Crimeia

Os russos começaram a atacar a oposição a uma semana do referendo sobre a independência na disputada região que dá acesso Mar Negro. A resistência ucraniana está dividida, completamente impotente.

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cartaz de campanha para o referendo Filippo MONTEFORTE/AFP

Vários activistas anti-ocupação russa foram raptados nos últimos dias na Crimeia. Um deles foi Anatoli Kovalski, que, juntamente com Andrei Shekun, se viu, no domingo, levado num carro das milícias pró-russas, que o interceptaram e agrediram na estação de comboios de Simferopol.

Kovalski e Shekun tinham ido buscar uma encomenda vinda de Kiev, que continha bandeiras e outro material de propaganda da Maidan, contra a anexação russa. Mas foram retirados à força do interior da carruagem, revistados e agredidos por um grupo com braçadeiras dizendo “Milícia Popular da Crimeia”. Esperaram na esquadra da estação até que um grupo reconhecido como pertencendo ao partido Rússia Unida os veio buscar.

Jornalistas locais conseguiram contactar  Sergei Tsekov, o líder deste pequeno partido que está por trás da tomada do parlamento e formação do novo governo pró-russo. Tsekov terá confirmado que os dois activistas estavam detidos na sede do partido.

O PÚBLICO deslocou-se ao local para tentar perguntar a algum responsável pela situação de Kovalski e Shekun. No edifício havia grande actividade, com grupos a entrarem e a saírem pelo grande portão, veículos a chegar e a arrancar. Elementos da segurança disseram com muito maus modos que não seria possível entrar, nem falar com ninguém.

Andrei Shekun organizadou os dois últimos protestos contra a ocupação russa, frente à estátua do escritor nacional ucraniano Taras Shevshenko. Entrevistado pelo PÚBLICO numa manifestação, dissera: “Não vamos desistir nunca, vamos mobilizar todo o povo da Crimeia para expulsar as forças russas da sua terra”.

O outro detido pelas forças pró-russas, Anatoli Kovalski, é um conhecido político com preocupações ambientalistas, que já foi ministro das Florestas do governo da Crimeia. Além disso, Anatoli é pai de Sergei Kovalski, o líder da Euromaidan da Crimeia.

Revolução e karaoke
Sergei, de 27 anos, é um próspero empresário de Sinferopol, com negócios por toda a Ucrânia. Fomos encontrá-lo num dos seus empreendimentos, a discoteca-clube de karaoke Broadway, no centro da cidade. É um espaço enorme, com sofás de cabedal falso cor-de-rosa, cheios de folhos e botões imitando gigantescos diamantes, lustres no tecto e tapeçarias bordeaux nas paredes, a condizer com os tapetes às flores.

Grupos de raparigas vistosas sentavam-se em algumas das mesas do salão onde foi preciso esperar uma hora pela entrevista com o líder revolucionário. Um segurança veio finalmente chamar-nos, conduzindo-nos por salas e corredores às escuras, entre muitos seguranças e guarda-costas.

Kovalski estava sentado a uma pequena mesa de café, num canto do aposento forrado a veludos e sem mais mobília, nem nenhuma luz excepto o candeeiro de cabeceira sobre a mesa. É um jovem franzino envergando, sobre a fina camisa branca, um fato escuro confeccionado por medida por algum costureiro italiano.

“Não sei onde está o meu pai. Recebi informações contraditórias. Mas sei quem o levou, juntamente com o amigo. Foi um dos grupos do [primeiro-ministro] Aksionov. Até sei os nomes deles. Há testemunhas. Não sei mais nada, excepto que não estão bem. Caso contrário teriam telefonado, ou atendido o telefone. Nunca consegui contactar com eles”.

Sergei Kovalski, proprietário deste luxuoso clube nocturno de gosto duvidoso, é o chefe eleito do movimento da Maidan na Crimeia. É o líder da resistência à ocupação russa, mas admite que não há muito que possa fazer. “Organizamos manifestações, para mostrar que os ucranianos não estão conformados”. E é tudo. Não planeiam iniciar uma resistência armada. “Somos um movimento pacífico, não temos armas nem soldados. Respeitamos a lei ucraniana. Mas quem diz que não temos meios para fazer nada está muito enganado”.

O que o Euromaidan da Crimeia vai fazer é boicotar o referendo. “Demos instruções a todos os habitantes da Crimeia, de todas as etnias, para que não vão votar. Se o fizéssemos, estaríamos a legitimar o resultado desse dito referendo”.

Para além disso, percebe-se pelas palavras e tom do líder, que a Maidan da Crimeia está à mercê das forças russas no poder. Tanto mais que não estão a ter apoio da Maidan de Kiev. “Não há coordenação entre nós, esse é o nosso principal problema”, reconhece Kovalski, que passou os últimos dias a tentar contactos internacionais e com organizações de defesa dos Direitos Humanos.

Numa gravação vídeo para a ONG Defesa dos Direitos Humanos na Ucrânia, feita a seguir à entrevista com o PÚBLICO, Kovalski dirigiu-se ao primeiro-ministro de facto da Crimeia, em pose de verdadeiro oligarca: “Aksionov, se és um homem, telefona-me, para nos encontrarmos num local neutro, para negociar a libertação do meu pai”. Depois falou ao presidente russo: “Vladimir Putin, tira os teus soldados daqui. Tira as mãos da Crimeia”.

Kovalski nasceu em Sebastopol e viveu toda a vida na Crimeia. “Agora não me sinto seguro. Vivo como um homem acossado, que pode ser assassinado a qualquer momento.” Já toda a família fugiu para outras regiões da Ucrânia. Sergei está aqui sozinho a chefiar a resistência, mas também a tentar proteger os seus negócios. “As minhas empresas estão totalmente ligadas a Kiev. Os nossos clientes estão nas grandes cidades da Ucrânia. Se a Rússia tomar o poder na Crimeia, seria o desastre para os negócios. Nunca viverei aqui sob a lei russa”. Isso está fora de questão: “No capitalismo tem de haver concorrência. Na Rússia ela não existe. Por isso seria impossível para mim trabalhar com eles.”

Outros activistas, e também vários jornalistas, foram raptados ou agredidos na Crimeia nos últimos dois dias. Kovalski diz que ninguém está a salvo. “Soldados estrangeiros estão na nossa terra. A qualquer momento podem começar a disparar, iniciando o derramamento de sangue”.

Os líderes da comunidade tártara da Crimeia anunciaram também ontem o boicote ao referendo. Além disso, só planeiam manifestações. Uma das razões para a sua impotência, disse ao PÚBLICO Iusuf Kurkshi, líder do partido tártaro, é “a traição dos partidos ucranianos. Falam muito, mas não fazem nada. Não têm resistência planeada, não contactam connosco. Estamos muito desiludidos com a Maidan de Kiev”.

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