A última palavra de 2016

1. As primeiras palavras que vi na quarta-feira de manhã, 9 de Novembro de 2016, foram: “Talvez queime o meu passaporte.” Era o post de uma amiga no Facebook, a milhares de quilómetros. Assim soube que Donald Trump tinha sido eleito Presidente dos Estados Unidos da América. Há vinte anos Trump Presidente seria um delírio dos Simpsons (e foi), e agora ali estava a minha amiga, eleitora em Nova Iorque, a dizer o que nunca pensara (e não pensa), puro impulso de pular fora, como o de centenas de milhões naquele momento, fora do planeta e deste ano tenebroso.

2. Quem eram todos aquele eleitores de Trump, os dos estados interiores desunidos, os do meio-de-lado-nenhum? Porque tinham ficado ocultos nas sondagens? Como acreditar na democracia quando ela se lança no fascismo a gritar: “Lock her up!!!”? Mas há dois mil anos europeus gritavam de júbilo no Coliseu quando homens eram atirados aos leões, há quinhentos anos índios viram chegar o apocalipse em forma de homem branco, e no século XX um homem chamado Adolfo Hitler ganhou eleições. O mundo tem acabado muitas vezes à medida que avança. Para a maioria dos vivos neste planeta, aliás, ele acaba todos os dias.

3. Alejandro Solalinde conhece bem esse fim do mundo. Na manhã de quarta-feira queria ter falado com ele, hoje é domingo e ainda quero, e ainda não consegui. Conheci-o em 2010 num albergue em Ixtepec, sul do México, onde milhares de centro-americanos que fugiam à violência e à fome se acumulavam, ilegais, antes de arriscarem a vida metidos nos buracos de “La Bestia”, o comboio que ia em direcção ao sonho dos Estados Unidos. Nunca me senti tão incapaz como nessa manhã de chuva e lama: fugitivos em baldios, gente transida, violada, roubada, doente, em estado de choque, que corria o risco de morrer dali a nada, e alguns tinham bebés, e muitos tinham filhos, e se sobrevivessem ao caminho chegariam ao horror de Ciudad Juárez, que nesse ano de 2010 era a cidade mais violenta do mundo. Agora é San Salvador, e na quarta-feira pensei nos amigos salvadorenhos que conheci neste ano de 2016, em plena campanha Trump, e se eles teriam o telefone de Solalinde, porque também o conhecem, como não. Quarta-feira foi um pesadelo para quem se sente um pouco indocumentado, imigrante, mexicano, muçulmano, judeu, gay, negro, mulher, mas quem o é, de facto, está simplesmente sob ameaça directa nos Estados Unidos da América e redondezas desde quarta-feira.

4. À procura de Solalinde pela Internet, dei com esta notícia recente, de antes das eleições: “O padre Alejandro Solalinde afirma que o muro de Donald Trump não selará a fronteira entre Estados Unidos e México, pois quem define quem entra e quem não entra nos Estados Unidos é o crime organizado, que durante a rota dos imigrantes sequestra, extorque, enterra, vende e trafica órgãos daqueles que tentam chegar a território estado-unidense em busca de um futuro melhor. Os criminosos são os que decidem, apoiados pela corrupção do Instituto Nacional de Migración no território mexicano e também os corruptos do ‘outro lado’.” Não consegui encontrar uma reacção do padre Solalinde à eleição, mas aposto que neste domingo está onde sempre esteve, com os que Trump quer tratar como gente a abater.

5. Enquanto isso multiplicam-se os protestos, as vigílias pós-eleição nos Estados Unidos da América. “Vamos lutar de volta, vamos resistir, e vamos ficar”, diz uma sem-passaporte, daquelas que entrou ilegal em criança, como outros 800 mil jovens latinos que Obama protegeu juridicamente, de forma provisória, por não ter conseguido ir mais longe. Trump jura reverter tudo isso, perseguir, deportar milhões. E perante os protestos tuítou, ao nível de sempre: “Acabo de ter uma eleição muito aberta e bem-sucedida. Agora contestatários profissionais, incitados pelos media, estão a protestar. Que injusto!” Não é um episódio dos Simpsons, é o novo Presidente dos Estados Unidos.

6. A propósito dos media, e do meia ou média culpa, bem convirá aos trumpistas que se continue a ocupar tempo com essa discussão, mas é próprio da sombra estar na sombra. Não me parece estranho tanta gente ter sido apanhada de surpresa, e essa gente coincidir com os media. Os media são, apanham e reflectem quem fala, quem lê, quem vê, quem dá a cara. Muitos deles disseram que iam votar Trump, mas não pareciam ser os bastantes para o perigo se tornar real. Muitos nunca estiveram à vista, nunca quiseram falar. E demasiados estiveram-se nas tintas, ou porque acreditam que tudo é mau ou porque acharam que Trump não podia ganhar. O que está e não está nos media é um espelho de todos.

7. A evidência desta eleição que mais me interessa não tem que ver com a suposta cegueira dos media nem com a diabolização das redes sociais. É a ideia de que, mais do que nunca, tudo passou a ser político. O que vemos, ouvimos e lemos, o que criamos e comemos, com quem trocamos de lugar, trabalhamos, dormimos ou nos casamos, como o reclamamos, e reclamamos o direito de mudar, de género, de dieta, de país, de profissão, de credo, o direito à preguiça e ao prazer. Tudo será luta, porque tudo está ameaçado, não há fora, todos estamos dentro. Uma parte manter-se-á sempre oculta, no fundo da caixa, fundo falso, pronto a propagar-se no ar, a libertar o mal, mas é assim desde o Big Bang, e se a vida é uma improbabilidade biológia, isso também quer dizer que literalmente vida é luta. Não há mais mal humano hoje do que há dois mil anos, ou quinhentos ou cem anos — embora, sim, hoje os homens consigam estragar o planeta a uma velocidade inédita, e essa não é a menor das ameaças Trump, o homem que declara as mudanças climáticas uma ficção. Talvez nenhuma ameaça exija tanta luta e mereça que ele caia antes de quatro anos.

8. Jamais Hillary Clinton me pareceu tão à altura do que teria sido o melhor resultado possível destas presidenciais como no seu discurso de concessão. Foi digna, justa e emocionante, desde a forma como encorajou uma nova geração a lutar ao plural que usou para agradecer a graça e determinação que Barack e Michelle Obama trouxeram à política. Hillary sairá desta derrota brutal como a vencedora do voto popular por meio milhão de votos, depois de uma campanha violentíssima em que, pense-se o que se pensar dela (e eu nunca fui uma simpatizante), nunca deixou de ser corajosa, essa virtude que no mundo Trump, o da sombra oculta, não é virtude.

9. Na manhã seguinte a essa quarta-feira negra, as primeiras palavras que vi ao acordar foram: amor, democracia, liberdade, e um link para um vídeo com Leonard Cohen. Era uma mensagem de um amigo. Fechei os olhos, e o computador, e pensei que não era possível. Cohen já tinha morrido quando Trump foi eleito, nós é que soubemos no dia seguinte. Eu adormecera a pensar no Saara fértil, porque acabara essa quarta-feira negra a falar para o outro lado do mar, a ouvir um plano de levar o Saara para o outro lado do mar, plantar o outro em música e pensamento, gente de carne e osso para amar. Isso era política, isso era a vida no pós-Tump. De manhã Leonard Cohen estava morto. Mas de todas as canções que ouvi nesse dia, e de tudo o que li, nada me ficou como o resumo do que fora a vida dele com Marianne, o seu perfume, e o seu alimento: “Às vezes era uma gardénia na minha mesa, perfumando toda a sala. Às vezes uma pequena sanduíche ao meio-dia. Doçura, doçura por toda a parte.” O amor, de tudo e nada, nunca foi tão político. Passado, presente e última palavra.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários