“A Ucrânia independente está destinada a morrer”, dizem manifestantes em Donetsk

Do Donbass, uma região da Ucrânia onde a maioria da população fala russo, pode vir o próximo pedido de “ajuda” a Moscovo.

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Membros de um grupo de defesa pró-russo num posto de controle em Donetsk Reuters

A população nunca tinha sentido essa necessidade, nem a situação económica justificava agitação social. Mas agora o medo dos “fascistas” de Kiev, em certa medida empolado artificialmente, faz crescer o medo e a divisão. “Tentámos criar um país, mas não foi possível”, dizem os manifestantes na Praça Lenine.

A discussão começa todos os dias a meio da tarde.  É uma combinação de tertúlia de reformados com uma acção de agit/prop, ali junto à estátua de Lenine, no centro de Donetsk, sob temperatura negativa. “Há dois meses, eu daria a vida pela Ucrânia”, diz uma mulher, exaltada com as mudanças a que tem assistido em si própria. “Mas o que aconteceu em Maidan matou o meu amor pela Ucrânia.”

Isto não quer dizer que não seja patriota, explica ainda a mulher, Ana Ivanova, 60 anos, professora primária. “Sou mais patriota do que os fascistas de Maidan.” Para ela, não há incoerência entre patriotismo e o facto de se ter acabado de trocar de pátria. Para Valentina Kavalienka, 50 anos, professora, mas de Matemática, também não. “Já me habituei à ideia de perder a Ucrânia”, diz ela, transformando isso num acto de coragem. “Eu não tenho medo por mim, mas pelos nossos filhos e netos. Todas estas pessoas choram pelo país que perderam. Mas não somos traidores.”

Ana pede para recitar um poema que escreveu sobre a situação: “Maidan roubou a minha boa mãe/ Deu-me uma má madrasta./ Agora quero ir para casa.”

Não há slogans nem cânticos na manifestação dos patriotas sem pátria. O grupo de menos de cem pessoas, na maioria mulheres, nenhuma com menos de 50 anos, discute com raiva, sobrepondo vozes e argumentos. “Os fascistas estão a chegar. Já criaram milícias e começaram a matar as pessoas que falam russo. Cada um de nós pode ser o próximo. Estão a chegar, como em 1933, os fascistas”, diz Valentina Kavalienka. “Em Kiev já estão a ensinar nas escolas que é preciso matar os 'moscal'.”

É um termo pejorativo que designava os ucranianos que traziam o sotaque de Moscovo, por terem servido no Exército do Império Russo. Hoje é o insulto usado para definir os ucranianos do Leste e Sul, de origem e língua russa. Estes chamam “banderas” aos ucranianos do Ocidente, numa referência a Stepan Bandera, o líder nacionalista que colaborou com os nazis, combatendo os russos.

“Há 24 anos que tentamos construir um país. Mas não foi possível”, diz Valentina. “O problema começou em 1991, com o colapso da União Soviética. Nunca nos perguntaram se concordávamos. Foi ilegal romper o acordo que existia entre as repúblicas.”

"Bomba-relógio a explodir"
Para Vladimir Viktoravich Angelien, 60 anos, olhos de um azul muito claro, quase branco, e um barrete de pêlo na cabeça, os acontecimentos de hoje estavam previstos há muito. “A Galícia foi um presente envenenado”, diz ele. A região do Oeste da Ucrânia que pertenceu à Polónia e ao Império Austríaco, até à Segunda Guerra Mundial, possui características e valores incompatíveis com os da Ucrânia do Leste e Sul, diz Vladimir. “Na Segunda Guerra, os habitantes da Galícia lutaram contra os russos. Foram ensinados a odiá-los. Por isso foi um erro tê-los juntado à URSS. Foi uma bomba-relógio, que está a explodir agora. A União Soviética mantinha as várias nacionalidades sob controlo, vivendo em conjunto. Mas agora isso é impossível. É uma questão de tempo, mas a Ucrânia independente está destinada a morrer. A Ucrânia não é um país possível. Não há futuro para este país.”

A manifestação da Praça Lenine concentra-se em redor de duas tendas montadas permanentemente, onde há bandeiras comunistas e do império russo, e bancas com um abaixo-assinado pedindo um referendo na região do Donbass, semelhante ao realizado na Crimeia no dia 16.

As opções seriam a anexação à Rússia, ou transformação da Ucrânia numa federação, onde cada região tivesse líderes próprios, eleitos localmente.

A manifestação decorre todos os dias, embora só aos fins-de-semana reúna mais do que uma centena de pessoas. Chegou a juntar milhares e a descambar em confrontos com os adeptos de Kiev, que provocaram pelo menos um morto e dezenas de feridos.

Um homem pega num megafone para fazer o “ponto da situação”. Fala de Pavel Gubarev, o auto-intitulado “governador do povo”, que está preso desde 6 de Março por “defesa do separatismo”. Gubarev é o líder do grupo pró-russo Milícia do Donbass e esteve à frente do ataque ao edifício do governo regional de Donetsk, por activistas pró-russos, a 3 de Março.

“O nosso governador do povo está doente, em coma, e os seus carcereiros não o deixam ir para o hospital”, diz o homem do megafone. “Ele é acusado de ser traidor. Para o actual Governo de Kiev, todos nós somos traidores e podemos também ser presos a qualquer momento. Porque, ao contrário dos 'banderas' de Maidan, nós não cobrimos a face. E, ao contrário deles, nós não temos armas.”

A seguir, uma mulher lê um comunicado: “Se não nos derem ouvidos, teremos direito de pedir ajuda à Rússia.”

Acção de agitação
Para Kirill Melekestsev, professor de História na Universidade Nacional de Donetsk, Gubarev está a ser transformado no líder de um movimento que tem pouco de espontâneo. “A população é muito pouco politizada e não está nada interessada em conflitos ou grandes mudanças. A maioria das pessoas não participa nas manifestações, não se envolve. A situação económica não está tão má que justifique agitação social.”

Mas há uma forte acção de agitação para levar as pessoas a mobilizarem-se pela integração na Rússia, diz Kirill. “Essa mistura de imperialistas russos e comunistas, que vemos ali na praça, é um pouco estranha e improvável. É óbvio que alguém está a tentar criar um movimento. A causa deles agora é a libertação de Gubarev, que está a ser apresentado como um herói e um mártir. Se conseguirem, ele poderá tornar-se numa figura aglutinadora.”

Economicamente, a região do Donbass tem fortes ligações com a Rússia, embora seja fundamental para a Ucrânia. As minas de carvão e as fábricas de aço produzem parte significativa da riqueza da Ucrânia, embora os seus clientes sejam maioritariamente russos. Nem poderá ser de outra forma, uma vez que a sua produção não cumpre os critérios de qualidade da União Europeia, dizem os economistas na região. E reconhecem que, com uma exploração adequada destes argumentos, é provável que tanto russos como industriais e trabalhadores do lado ucraniano venham a considerar a anexação do Donbass na Rússia como do seu interesse.

Alexandra Karabenikova, 28 anos, designer de jardins, vive há cinco anos em Donetsk e nunca foi à Rússia, cuja fronteira fica a cerca de 200 quilómetros. “Nunca senti vontade de ir lá. Para quê?" Donetsk é uma metrópole com mais de um milhão de habitantes, e Alexandra gosta de viver aqui. “Há muitos parques, muita coisa para fazer”, diz ela, sentada num restaurante enorme, repleto de jovens. Os monitores de televisão emitem videoclips de bandas russas e ucranianas. Alexandra nem sempre distingue uns dos outros. “O que significa isso de ser etnicamente russo? Não sei. Quer dizer que cantam o hino russo? Eu nem sei distinguir os russos dos ucranianos”, diz ela, que tem mãe russa e pai ucraniano.

As questões identitárias só foram exacerbadas nos últimos meses. O cariz nacionalista ou fascista que assumiu a revolução da Maidan de Kiev assustou os russos das regiões de Donetsk, Karkhiv, Dnepropetrovsk, tal como aconteceu com os da Crimeia. Em Donetsk, cerca de 40% da população tem origem russa, mas são mais de 60% os que têm o russo como primeira língua.

As declarações contra os russos, contra os “moscal”, feitas pelas novos governantes de Kiev lançaram o medo nalgumas franjas da população. O fantasma dos “banderas” e dos fascistas foi crescendo, em grande medida empolado artificialmente. Segundo as autoridades de Kiev, por obra dos serviços secretos russos.

As claques de futebol do Shakhtar Donetsk
É difícil distinguir informação e rumor, quando se fala da presença na região de milícias pró-Maidan, constituídas por elementos do Sector Direito e outros grupos radicais. É verdade que os grupos mais visíveis de activistas pró-Ucrânia foram constituídos pelas claques de futebol do clube Shakhtar Donetsk. O seu estilo violento e fascizante não ajudou a dissipar os medos da comunidade russa.

Os líderes das claques e do clube recusaram-se a falar com o PÚBLICO, industriados que foram a remeterem-se ao silêncio, depois de terem sido acusados de provocar reacções violentas do sector russo. Mas o mal estava feito. As milícias pró-russas organizaram-se e criaram piquetes e checkpoints por toda a região.

Na estrada que liga Donetsk à fronteira russa, junto à povoação de Iasinovatski, dezenas de activistas pró-russos criaram uma barreira, em colaboração com a polícia local, que está, aos olhos de todos, ao serviço dos russos. “Estamos aqui dia e noite para impedir que os fascistas do Oeste se aproximem”, diz Giorgi, 33 anos, que pernoita numa tenda à beira da estrada. “Os nossos antepassados lutaram contra o Ocidente, agora o Governo de Kiev é amigo do Ocidente”, diz Giorgi. E outro miliciano acrescenta: “O Governo de Donetsk tem de ser eleito pelo povo.”

Há dias, uma coluna de tanques do Exército ucraniano avançou pela estrada em direcção à fronteira, mas foi detida aqui. “Não temos armas, mas bloqueámos a estrada. Obrigámos os tanques a voltarem para trás.”

Os elementos da milícia de “autodefesa” dizem-se “patriotas” e também “mais russos do que ucranianos”. Dizem que estão “em contacto com os russos” e “prontos a ajudá-los, quando eles passarem a fronteira, para virem proteger a população eslava do Donbass”.

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