“A turma está bem revoltada com a Dilma, acham que ela tem sido ruim”

Numa pequena localidade do estado de São Paulo, dominado pelo PSDB, a Presidente do Brasil obteve a pior votação em todo o país. Nesse “lugarzinho bom”, os eleitores reclamam da corrupção no Governo, da qualidade da saúde e da educação. Para eles, a mudança é “tirar a cambada do PT do poder”.

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Na primeira volta das presidenciais, Saltinho deu à Presidente brasileira a sua pior votação em todo o país Ueslei Marcelino/REUTERS

Luís Frederico tem 48 anos, 34 deles passados “em cima dessa terra trabalhando” – plantando, picando, cobrindo e recobrindo cana de açúcar numa das muitas parcelas que rodeiam o município de Saltinho, uma pequena localidade no estado de São Paulo, a duas horas de distância da maior metrópole brasileira. “De tanta palhaçada que já viu”, fez um juramento que, afirma, é para cumprir até cair para o lado. “Nunca mais na vida eu voto em ninguém. Se o meu pai estivesse se candidatando a alguma coisa, e precisasse do meu voto para ganhar, ele ia morrer de fome porque eu não ia votar nele não”, garante, numa breve pausa do trabalho de preparar a terra vermelha do alqueire que será semeado.

“Você convive com tanta sem vergonha na política que acredita em quem?”, explica o seu irmão e companheiro de trabalho Claudionor, que apesar de compreender os motivos que mantêm Luís Frederico afastado das urnas, não partilha do mesmo cepticismo. “Eu estou como o Tiririca, acho que pior não fica”, diz, referindo-se à situação do Brasil, “que é muito melhor hoje do que era na época do Governo do Sarney”. Por isso, Claudionor não pensa em penalizar o actual Executivo na segunda volta da eleição presidencial, dentro de uma semana. “Não troco o certo pelo duvidoso”, confessa. O seu será um dos poucos votos em Dilma Rousseff.

Na primeira volta das eleições brasileiras, no dia 5 de Outubro, Saltinho deu à Presidente brasileira e candidata à reeleição a sua pior votação em todo o país. A representante do Partido dos Trabalhadores (PT) não obteve mais do que 10,2% dos votos válidos do município, que tem um total de 6119 eleitores. Em território tradicionalmente conservador, e com o voto fidelizado, ninguém esperava que a candidatura governista fosse vingar. Mas, ao mesmo tempo, não se previa tamanha hostilidade à campanha da Presidente.

“O ser humano é muito insatisfeito. O pessoal nunca está contente. O problema até nem é tanto a Dilma, é um problema social”, aventura Nilsa, uma doceira da região que acaba de fazer a sua entrega na Padaria Central, na Avenida 7 de Setembro, a via principal da localidade. Zélia, atrás do balcão, diz que não entende o suficiente de política para poder explicar as razões para o mau resultado da Presidente no município. “A turma está bem revoltada com a Dilma, acham que ela tem sido ruim”, conta. No dia 26, aposta, a votação de Saltinho vai ser de sentido único no candidato do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB). “Dizem também que o Aécio tem um lado ruim”, mas pelo menos não é a Dilma.

Talvez seja a certeza de que a eleição está mais do que decidida em Saltinho que explique o facto de quase não haver propaganda eleitoral visível em todo o município. Os habitantes garantem que sim, as campanhas passaram por aqui, mas pelas ruas, construídas em quadrículas e ocupadas com moradias térreas numa paleta colorida, intercaladas por variados pequenos comércios, o PÚBLICO só encontrou um único cartaz: dos candidatos a senador e deputado estadual pelo Partido da República (PR), o número 22 na lista oficial das formações políticas do país. Duas pichagens, bastante desbotadas, comprovam que a localidade não vive imune à histórica polarização e rivalidade política brasileira entre o PT e o PSDB – num muro branco ainda se vê o número 13 desenhado a vermelho, a “marca” dos petistas, enquanto outra esquina ostenta o 45 que identifica os tucanos (o animal é o símbolo do partido, fundado pelo antigo Presidente Fernando Henrique Cardoso e também por Aécio Neves).

"É o Aécio"

“Aqui não tem a mínima dúvida”, repete um friso de mulheres, tranquilamente sentadas à conversa no pátio, vigiando as travessuras de uma menina de colo que enfrentava o calor só de fralda . “É o Aécio”, diz uma; “o Aécio vence”, diz outra; “não tem jeito, ele ganha de novo”, garante a próxima; “vamos ter um novo Presidente da República”, anuncia a da ponta. No outro lado, encostada ao muro que separa a moradia da casa vizinha, Clara Cassano completa: “A gente está torcendo muito”.

Sentados à conversa na praça, os dois aposentados Navínio e Agenor confirmam que “aqui em Saltinho não tem Dilma não, nem ninguém quer saber de ladrão do PT. Para votar nesse povo outra vez só se for louco. O pessoal aqui vota no Aécio”.

Na primeira volta, a votação no candidato presidencial do PSDB em Saltinho chegou aos 68%. Melhor do que Aécio Neves, só mesmo o recandidato ao cargo de governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, do mesmo partido, que obteve 73% (o seu total no estado foi de 57%). As quatro mulheres Cassano – representantes de diferentes gerações – votaram nos tucanos com convicção. “A situação no país é horrível, é um absurdo o que está acontecendo”, começa a matriarca Ilda Cassano, a dona da casa e a mais comedida, ou diplomática, das interlocutoras. “O que temos no Governo é um veneno. Detesto a Dilma, o PT, essa turma toda”, vai dizendo a nora Adriana Taranto, de 45 anos.  “A saúde é uma porcaria, a educação é uma porcaria, a economia é uma porcaria. E o Governo é um abuso total. Todo o mundo sente isso, mas fala nada: o brasileiro é assim.”

Clara Cassano diz que “gosta do PSDB” e por isso votou em Aécio, que segundo sabe “também faz lá as falcatruas dele”. No entanto, distingue, o tucano “não mexe na estrutura, não interfere com os fundamentos que abalam o país". "A Dilma não obedece à Constituição brasileira, e isso é que me apavora. Ela pula, ela manipula as leis, ela faz o que quer como fez na Petrobras”. Clara não acredita que a Presidente seja má pessoa – “não é ela que é ruim” – mas não tolera que Dilma não tenha posto um cobro às “jogadas políticas” que alimentam a corrupção.

Valter, que já está reformado e tem tempo para acompanhar as obras de melhoramento da sua residência na Avenida 7 de Setembro, é um dos muitos habitantes que se insurge contra “a corrupção e a bandidagem deste país, em que ninguém toma providência". "Aqui, o cara de bem fica preso dentro de casa com medo, e o bandido anda tranquilo pela rua armado”, censura. O seu interesse pela campanha eleitoral é pouco porque, considera, ela é um reflexo da “política muito suja” que se tem feito no país. No domingo, Valter vai votar em Aécio Neves “para tirar essa cambada do poder”, e acredita que o social-democrata  vai ganhar a eleição: “Quem votou no Aécio e na Marina na primeira volta quer mudança, vai sair daí porquê?”

Claudionor ressalva que nunca foi a Minas Gerais, o estado de onde Aécio é natural e que governou entre 2003 e 2010. O candidato do PSDB despediu-se do cargo com uma taxa de aprovação de 92%; o seu legado mineiro, político, económico e social, tem estado debaixo de fogo na campanha eleitoral. “Não sei nem tenho como saber se [Minas] é tão bom como dizem, nem tão mau como dizem. Mas sei como está aqui: Saltinho está bom, Rio das Pedras [o município vizinho] está uma porcaria”, compara, puxando de cabeça pelo número de máquinas entregues pelo Governo federal aos dois municípios: num, diz, o prefeito faz as coisas funcionar; no outro, “foi tudo terceirizado e está por fazer”. “O Governo deu o dinheiro, não é problema da Dilma”, conclui.

Lugar tranquilo

As opiniões das mulheres da família Cassano, de Valter, Claudionor, ou de Zélia e Nilsa, têm as suas nuances, mas é absolutamente consensual que a pequena localidade é “um lugarzinho bom”, “tranquilo”, “normal”. Problemas das cidades grandes da região – Piracicaba, Campinas, São Paulo, numa escala da mais compacta à mais gigantesca – não se manifestam em Saltinho: trânsito, poluição, exiguidade, insegurança, violência (embora Clara não esconda o seu descontentamento com os jovens que “ficam andando de skate pela rua à noite” e o seu desagrado com “alguns casos de dependência de drogas” entre a população mais nova).

A preocupação corrente, como em muitos outros pontos do estado de São Paulo, tem a ver com a falta de água. A localidade vive em regime de racionamento da distribuição pública há mais de dois meses: na rede municipal, a água só corre entre as 16h e as 19h. “Mas isso não se pode dizer que seja culpa do Governo”, admite Zélia, “para resolver o problema, só Deus”, considera.

O estado de seca obriga as instituições a tomar medidas extremas e as populações a improvisar. Os residentes deixaram de lavar os seus pátios com mangueira; na padaria, não se usam mais chávenas de louça para servir o café. “Desculpe mas tem de ser copo de plástico”, justifica a funcionária. Quem tem depósito de água em casa aproveita o horário de abastecimento para “encher a caixa” e garantir que tem água corrente ao abrir a torneira. De resto, a solução é encher baldes e garrafões para suprir as necessidades domésticas fora do horário.

Numa tarde típica de dia de semana, a Praça Nossa Senhora de Fátima, ponto central de Saltinho, com um coreto a meio e paragem de autocarro no topo, é ocupada por “aposentados” e avós que esperam pelo fim da escola primária (o ginásio) para regressar os netos a casa. Renata Gonçalves espera pela chegada do transporte que a há-de levar até à cidade de Piracicaba, onde trabalha uma boa parte da população de Saltinho – aqui, ninguém fala no desemprego como uma aflição ou tormento pessoal. “As coisas estão mais ou menos. Mas difícil está em todo o lugar, então vou dizer que está razoável”, responde ao PÚBLICO.

Renata mudou-se para Saltinho há 22 anos e constituiu família. Não liga muito à campanha eleitoral porque “é tanta enganação que a gente não liga mais”, mas lá avança que “aqui o PSDB é forte e o PT quase não entra”. “Para mim tanto faz”, confessa, colocando-se no grupo dos eleitores indecisos para a segunda volta presidencial.

“O Governo está médio, mas a inflação está alta. Tudo sobe menos o salário”, lamenta, reconhecendo que a sua vida nos últimos anos melhorou, principalmente depois de ganhar a “carteira assinada”, que regularizou a sua situação laboral e lhe garantiu o acesso ao sistema de segurança social. Como empregada doméstica, o  serviço de Renata não estava reconhecido em letra de lei: foi legislação aprovada pelo Governo de Dilma Rousseff, há pouco mais de um ano, e conhecida como o PEC das Domésticas, veio ampliar os direitos laborais destes trabalhadores (uma categoria que inclui empregadas de limpeza, cozinheiras, jardineiros, motoristas, amas e outros cuidadores que desempenham tarefas em ambiente doméstico). “Desde que a patroa assinou a carteira, eu tenho fundo de garantia, 13º, seguro de desemprego, férias”, enumera (Renata nunca tinha tido férias desde que começara a trabalhar).

Terra de cana

Há muitas mulheres na sua situação, informa – “A maioria daqui trabalha lá em Piracicaba, em lojas, na indústria, muita gente que trabalha como empregada ou como babá”. A população começa paulatinamente a trocar o sector primário pelos serviços, mas o município de Saltinho ainda é 60% rural. Foi o negócio do café que esteve por detrás da fundação e do desenvolvimento da cidade, numa região de transição de mata atlântica para o cerrado, no final do século XIX: hoje em dia, a cana-de-açúcar é uma monocultura e praticamente um monopólio no local. Há quem já tenha arriscado trocar a cana pelo milho ou soja (“até deu pena do pobre coitado”, compadece-se Luís Frederico) e quem tenha começado a investir no gado, mas a paisagem não desmente de onde vem a riqueza local.

Com o seu trabalho na fazenda do Sertãozinho, de 181 hectares, os dois irmãos Luís Francisco e Claudionor garantem um fornecimento de 17 mil toneladas de cana-de-açúcar à unidade de transformação de Santa Helena da Raízen, a principal fabricante de etanol do Brasil, com uma produção anual de cerca de 2000 milhões de litros de biocombustível. Se não fossem as suas três décadas a plantar cana, Luís Frederico acredita que já estaria morto: ele atribui a sua sobrevivência, da mulher que já fez 13 cirurgias e da filha de 16 anos ao facto de ter convénio para o acesso ao chamado Hospital da Cana, uma unidade de saúde financiada pela cultura canavieira. “Nasci pelado e pobre. Quem é como eu, mas não tem convénio quase morre”, informa. Claudionor concorda, e é por isso que para ele, o mais importante nas promessas dos políticos é o que diz respeito à saúde. “Vou falar, sem saúde não dá para fazer nada.”

Texto corrigido no dia 20/10/2014: O número do PT na lista oficial das formações políticas do país é 13 e não 15, como se dizia na versão original do texto

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