A Síria é uma prova “do fracasso da política de vizinhança da Europa”

“Estão a acontecer ali coisas gravíssimas, que podem mudar fronteiras numa região vizinha, onde tudo o que acontece tem consequências para nós", diz Sampaio, promotor de um programa de bolsas para sírios que foram obrigados a interromper a sua formação superior.

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"Sou um ex-presidente, há portas que se conseguem abrir assim", diz Sampaio Daniel Rocha

Ex-presidente da República e representante da ONU para a Aliança das Civilizações entre 2007 e 2013, Jorge Sampaio não fica muito tempo parado. Mal saiu da Aliança, lançou-se numa empreitada complexa: criar, do zero, a Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes Sírios, um programa que permitiu trazer já para Portugal 65 sírios que frequentam o ensino superior e enviar outros para o Egipto, Líbano, Turquia ou Bélgica, que acaba de receber 28 alunos.

Conseguir mobilizar as universidades “foi muito fácil”, diz Sampaio, numa entrevista ao PÚBLICO. Mais difícil tem sido conseguir apoios financeiros (para viagens, bolsas, alojamento) e há centenas de vagas disponíveis por preencher. Instituições como a União Europeia, por exemplo, não se têm mostrado muito disponíveis para colaborar, enquanto enviam milhões de euros para ajudar os países vizinhos da Síria, que recebem mais de três milhões de refugiados.

“Nunca é fácil. A UE tem outras prioridades, mas há países que individualmente tem ajudado bastante” os sírios, diz Sampaio. “Isto tem tudo a ver com o fracasso da política de voisinage [vizinhança], para o Mediterrâneo, houve várias tentativas mas as políticas importantes ficaram pelo caminho.”

E a Síria, afinal, aqui tão perto, parece longe aos olhos dos líderes e dos cidadãos. “Estes países fazem parte do nosso espaço geográfico e as lideranças demoram a perceber isso”, afirma Sampaio. “Estão a acontecer ali coisas gravíssimas, que podem mudar fronteiras e reformular toda a região, uma região vizinha, onde tudo o que acontece tem consequências para nós.”

Nos últimos meses, o programa tem contado com mais promessas e apoios concretos. “Foi preciso o Estado Islâmico e a decapitação de ocidentais para que se percebesse que a Síria é aqui ao lado e importa?”, pergunta-se. “Sim, é verdade, parece que estamos a acordar. Quando há tanto tempo víamos o drama da imigração, o drama dos refugiados”.

Nos Estados Unidos, onde Sampaio e a sua assistente, Helena Barroco, passaram os dias da Assembleia-Geral da ONU, também há sinais positivos. “Há uma grande abertura, o nosso parceiro, o Institute of International Education, criou um consórcio e há três sírios que chegaram agora a Portugal com bolsas patrocinadas pela Carnegie Corporation.”

Sampaio diz que não é só à Síria que a Europa tem prestado menos atenção do que devia. “Nem ligámos à Síria nem damos suficiente atenção à Tunísia, um país que está a fazer um percurso que nos deixa muito optimistas.” É já daqui a uma semana que os tunisinos votam em eleições legislativas, as primeiras da transição no único país das revoltas árabes cuja experiência ainda pode ser um sucesso.

Em Portugal, Sampaio elogia o apoio recebido por todas as autoridades, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, essencial para aligeirar processos, ao Ministério da Saúde, passando pela Força Aérea que disponibilizou um avião para ir buscar o primeiro grupo a Beirute, no final de Fevereiro.

“As universidades acharam a ideia importante” e têm “ajudado muito na integração”. “As empresas também aderiram muito bem e conseguimos que a maioria fizesse estágios durante o Verão.”

Apoios particulares e Barenboim

A Liga Árabe, o Conselho da Europa e a Fundação Gulbenkian, que oferece bolsas a sírios arménios, são outros parceiros. Mas a maioria dos apoios são particulares: há doações de cidadãos árabes, voluntários que ajudam a gerir os problemas do quotidiano, uma família portuguesa que acolheu uma estudante (ver texto na revista 2), um casal de organiza jantares de beneficência.

Também há sinais que indicam que a maré pode estar a mudar, como o concerto de Daniel Barenboim, em Bruxelas, há três semanas, “um grande sucesso que ajudou muito a chamar a atenção para a iniciativa”.

A verdade é que não existia uma iniciativa assim e a ideia agora é tentar criar um mecanismo duradouro que permita reagir depressa às crises. “Não havia um mecanismo de resposta de urgência para o Ensino Superior, há medidas para outros níveis de escolaridade, mas nada para a formação superior”, nota Sampaio.

Aproximar as pessoas

As universidades portuguesas, cada vez mais abertas ao mundo, estão ainda mais internacionais.” Esse lado é importantíssimo. Nós conhecíamos pouco os sírios, não sabíamos que tinham este nível de educação e de abertura, era-nos um país estranho, e isto também serve para aproximar as pessoas umas das outras.”

Entretanto, quase todos falam em voltar para reconstruir o seu país, sem saberem quando é que isso será possível. Referindo os ataques aéreos da coligação liderada pelos EUA para combater os jihadistas que atacam no Iraque e na Síria, Sampaio lembra a importância de não continuar "a ignorar o Irão, e as negociações sobre o seu programa nuclear que estão a acontecer, um país muito importante para ser trazido à discussão sobre a Síria.”

Quanto a Sampaio, o que é que o move, depois de tantos cargos internacionais e anos de política activa? “Tenho uma assistente muito boa, a Helena, estamos sempre a ter ideias. Sou um ex-presidente, há portas que se conseguem abrir assim, não é todos os dias que se consegue um C-130 para ir a Beirute”. E acrescenta, a rir: “Agora não há nada a fazer, começámos e eles já cá estão, temos de os acompanhar até ao fim”. 

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