A revolução cubana de Barack Obama

Que relação há entre a queda do preço do petróleo e o diálogo americano com Cuba?

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1. Há pontos críticos que assinalam o fim de qualquer coisa e o começo de outra, em que “nada será como dantes” — o que não é uma garantia de felicidade. A “troca de espiões” e o restabelecimento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba são um desses marcos. O americano Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations, qualificou o acordo entre Barack Obama e Raúl Castro como “o último anúncio de que a Guerra Fria acabou. (...) Na quarta-feira, Barack Obama exorcizou-a de uma forma grandiosa.” A ressonância histórica e simbólica da revolução cubana no século XX mais ênfase dá ao acontecimento.

Formalmente, não é um acordo, são “medidas unilaterais” — duramente negociadas, em segredo, durante 18 meses, com a mediação do Vaticano e do Canadá. De resto, o conflito, que dura há cinco décadas, não terminou, pois o embargo geral permanece e só poderá ser levantado pelo Congresso americano. Isso não impediu Obama, usando das prerrogativas presidenciais, de anunciar uma série de passos para alargamento do comércio bilateral, das relações financeiras ou da cooperação tecnológica.

2. “Muito interessantes são os reflexos internacionais do acontecimento. É sobretudo relevante o regresso ‘em grande’ do Vaticano à cena internacional”, observa o general italiano Carlo Jaen. O Vaticano condena o embargo desde João Paulo II, Bento XVI insistiu no tema e Francisco foi decisivo. “O Vaticano encontra-se em melhores condições do que no passado para ser considerado um mediador neutral.”

A surpresa maior veio de Obama. Enfraquecido pela derrota democrata nas eleições de Novembro e declarado lame duck (pato coxo), tomou três iniciativas que mostram que “o anúncio da sua morte é exagerado”: o acordo com a China sobre o ambiente, a legalização temporária de cinco milhões de imigrantes sem papéis e, agora, Cuba.

Por muito pensarem em Obama e no Irão, os israelitas deram atenção a esta iniciativa. Resumiu o analista Chemi Shalev: “Na quarta-feira, o Presidente Obama fez aquilo que, num campo de batalha, se chama um ‘golpe de mão’, um ataque potente que pode decidir da sorte das campanhas.” Contornou o Congresso, usou da plenitude dos seus “privilégios executivos” e restabeleceu a sua estatura internacional: “Foi a revolução cubana de Obama.”

3. Ambas as partes têm expectativas diferentes. Castro espera que a détente e aqueles “pequenos passos” ajudem a recuperar a economia e a iniciar uma transição política controlada. Obama aposta em que o acordo estimulará uma dinâmica de abertura política e de aproximação entre os dois países. Não pensa só em Cuba, pensa também na América Latina.

Disse alguém que nada teria acontecido sem a queda do preço do petróleo nos últimos meses e sem a urgência de Raúl, de 83 anos, em consolidar a passagem do poder ao seu vice-presidente, Manuel Díaz-Canel, prevista para 2018. Que faz aqui o petróleo? É muito simples: a Venezuela.

Com Hugo Chávez, Cuba encontrou um aliado que lhe oferecia um generoso balão de oxigénio: 80 mil a 100 mil barris de petróleo diários. Paralelamente, os cubanos asseguravam grande parte dos serviços médicos e escolares ao regime bolivarista. Estavam presentes em quase todos os níveis do aparelho de Estado. A economia venezuelana entrou entretanto em descalabro. A queda do preço do petróleo faz o resto. Os cubanos conhecem melhor do que ninguém o estado caótico da Venezuela e sabem que vão perder o “benfeitor”. Daí a urgência de abertura aos Estados Unidos.

O programa de reformas económicas em Cuba não resultou. Os dirigentes são forçados a encarar medidas mais amplas e rápidas. “Penso que estão em vias de tentar lançar um processo de mudança que lhes permita salvar a pele e conduzir o país para um sistema político mais viável”, diz Christopher Sabatini, presidente do Cuba Working Group, do Council of the Americas.

Obama foi pragmático. Cuba já não é uma ameaça estratégica.

Não deu lições de democracia a Castro nem impôs condições explícitas. Confirmou o abandono da política de “mudança de regime”. Basta-lhe a constatação do isolamento de Havana, que o coloca em posição de vantagem. Reafirmou os princípios e valores americanos e reconheceu o erro do embargo dizendo que “não se pode prosseguir a mesma política durante cinco décadas e esperar obter um resultado diferente”. O embargo penaliza a população e ajudou o poder cubano a justificar o fracasso económico e a repressão como vítima do imperialismo yankee. Trouxe-lhe simpatia internacional.

Raúl Castro salva a face ao receber solenemente os três prisioneiros que Fidel jurara um dia que voltariam a Cuba. Raúl cumpre a promessa. Fidel está em silêncio e aparentemente fora de jogo.

Alguns dissidentes cubanos “temem que um boom económico fortaleça o Estado-partido, como na China, e que o capitalismo enriqueça os burocratas do partido como acontece na Nicarágua”, escreve o argentino Héctor Schamis, especialista da América Latina na Universidade de Georgetown, em Washington. O temor do regime é abrir um processo de que depressa se torne irreversível, como na Polónia, na África do Sul ou no Chile. “Nunca é fácil uma transição democrática, sempre marcada pela incerteza.”

É improvável que Cuba se democratize num futuro próximo, que o Partido Comunista abandone o Governo e se crie rapidamente uma economia que funcione, diz a americana Julia Sweig, especialista em Cuba. “Mas tudo isto correrá melhor se as relações com os Estados Unidos forem normalizadas.”

4. Obama calcula recolher outros frutos. O previsível afundamento da Venezuela deixa o Presidente Nicolás Maduro sem alternativas. O anunciado abandono por Cuba — mesmo que compensado por “palavras fraternas” — pode ser uma certidão de óbito. Maduro saudou apressadamente a “valentia” de Obama por dialogar com Cuba. Washington respondeu decretando sanções contra altos funcionários de Caracas.

A Venezuela está só. “Cuba teve de encontrar uma solução para a sua dependência perante a Venezuela”, explica a analista venezuelana Elsa Cardozo. “A Venezuela perdeu muita da sua influência política e económica. (...) Poderá continuar a fornecer petróleo subsidiado aos países das Caraíbas em troca do apoio às suas iniciativas? Antevê-se uma crise económica e política e muita conflitualidade.”

Interroga-se Héctor Schamis: “Que se passará com os Rafael Correa [Presidente do Equador], os Evo Morales [do Peru] e outros parentes próximos de Caracas, no momento em que Havana faz negócio com os gringos? É o fim da história? A história mal começou: e nada será como dantes.”

Texto corrigido às 12h22 Raul Castro tem 83 anos e não 88.

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