A revolta europeia

O nacionalismo está de regresso, com uma forte influência política

A decisão dos cidadãos britânicos de abandonaram a União Europeia é mais uma prova da grande ameaça que pesa sobre a Europa: o nacionalismo. O problema é gravíssimo: a União Europeia está em risco, a paz na Europa está em risco. Não esqueçamos que o nacionalismo não só não é exclusivo dos Estados membros da União, como já fez ruir a arquitetura europeia de segurança com as políticas de Vladimir Putin.

Foi para conjurar o nacionalismo, responsável por duas guerras mundiais, que no pós-guerra foi lançada a construção europeia. O nacionalismo era a guerra. A integração europeia assentou na convicção de que só reforçando a interdependência, deslegitimando o nacionalismo e a xenofobia e vencendo o medo do outro seriam os europeus capazes de viver em paz e garantir a justiça social. E a História provou que tinham razão, durante mais de 60 anos – o mais longo período de paz da Europa.

O nacionalismo está de regresso, com uma forte influência política. Para muitos parece corporizar e dar sentido à revolta anti-establishment das classes médias europeias, confrontados com ameaças sérias ao seu bem-estar social, mas é também uma resposta aos que consideram que a construção europeia minou a soberania popular assente no voto.

Um dos aspetos mais marcantes deste referendo foi a longa lista dos que apelaram à continuação do Reino Unido na União Europeia: os líderes de todos os partidos que governaram o país desde a Segunda Guerra Mundial, os dirigentes da alta finança, as organizações sindicais. Uma longa e impressionante lista repleta de notáveis que era brandida pelos defensores do "Ficar", convencidos de que tinham nas mãos um argumento forte contra os defensores do Brexit. O problema é que, em boa medida, essa lista tinha em si mesma muitos argumentos que deram alento à escolha da saída.

Para os britânicos, a União Europeia já não é fonte de progresso social, e o mesmo se passa em muitos outros Estados-membros. Seria um erro grave considerar que a saída do Reino Unido é apenas o produto de idiossincrasias insulares: uma ilha que nunca aceitou bem a adesão e que vive nostálgica de um império que já não existe.

Este tipo de argumentos terá tido a sua influência, mas há razões que não são exclusivas dos britânicos. Por muito que custe a alguns, especialmente depois do resultado do referendo, os britânicos são hoje profundamente europeus nas suas inquietações e aspirações.

A ilha já não existe, o nevoeiro, se existiu, foi vencido pela dimensão das relações humanas, culturais e económicas, pelas redes, pelos sentimentos que unem os britânicos ao continente e que os defensores do Brexit não serão capazes de romper. As inquietudes que exprimem não são diferentes das expressas por muitos outros europeus – um referendo na França ou na Holanda não teria, muito provavelmente, resultados substancialmente diferentes. Aliás, isso mesmo foi o que se viu nos referendos francês e holandês ao tratado constitucional.

Os cidadãos europeus exprimem duas inquietudes fundamentais: por um lado, preocupam-se com a sua qualidade de vida e com o futuro; por outro, sentem que a sua voz não é ouvida, que o poder foi usurpado pelas elites políticas, económicas e financeiras, numa relação pouco saudável com o capital financeiro, que consideram responsável pela crise financeira de 2008.

Esta revolta europeia foi canalizada pelos nacionalistas que apontam como bode expiatório os emigrantes e os refugiados, sobretudo se muçulmanos. O nacionalismo europeu é hoje islamofóbico. Esta corrente já está presentemente no poder na Hungria e na Polónia, tem uma enorme influência noutros países, como a Dinamarca, e está em franca ascensão em grande parte da Europa, nomeadamente em França. E não é só a extrema-direita que usa o argumento xenófobo anti-imigrantes: David Cameron e grande parte dos Conservadores, dos dois lados da barricada, também a ele recorreram. O mesmo fazem, como Sarkozy ou Manuel Valls, outros partidos democráticos na tentativa desajeitada de travar a influência crescente da extrema-direita, banalizando assim o discurso xenófobo.

Para ter um futuro, é vital que a Europa ouça os seus cidadãos. Tanto os defensores do remain como os defensores do leave exprimiam a mesma convicção de que as instituições europeias não são suficientemente transparentes e democráticas, que o poder já não reside nos cidadãos, mas sim em estruturas distantes e burocráticas, que o Parlamento Europeu não tem as competências de um verdadeiro órgão representativo da soberania popular.

Os cidadãos estão hoje empoderados pela educação e pelas tecnologias de informação, têm capacidade para afirmar a sua vontade fora das grandes estruturas partidárias, como acabamos de ver no Reino Unido e como vimos em França, onde um blogue de oposição ao Tratado Constitucional dominou o debate, contra os grandes órgãos de comunicação.

Para sobreviver, a União Europeia necessita de dar um salto democrático, o que significa não só criar mecanismos de representação e participação dos cidadãos, mas também de representação dos Estados, em pé de igualdade. Quando Jean-Claude Juncker, Presidente da Comissão Europeia, declarou que não se aplicariam sanções à França, porque "a França era a França" e se continua a discutir a sua imposição a Portugal ou a Espanha, estamos perante uma violação grosseira do princípio da igualdade entre os Estados, o que tem desde logo como efeito direto alimentar o nacionalismo.

Se Cameron já se demitiu, resta saber quais serão as lições do referendo que tirarão os dirigentes das instituições europeias: reconhecerão que tratar com arrogância os cidadãos e os estados-membros se paga caro? Irá a chanceler alemã reconhecer que imputar a culpa da crise financeira dos países do sul aos seus cidadãos foi um erro, político e ético, grave?

Quando o Muro de Berlim caiu, Gennady Guerasimov, porta-voz de Gorbachev, afirmou que se aplicaria a "doutrina Sinatra", o My Way, que cada país do Pacto de Varsóvia seguiria o seu caminho. A União Europeia corre um sério risco de um cenário My Way, com cada Estado a seguir exclusivamente o seu interesse nacional, numa visão estreita e egoísta, comprometendo não só o presente, mas sobretudo o futuro dos nossos filhos e netos.

Também não é solução um cenário de integração económica e financeira liderado pela Alemanha, numa União a várias velocidades, que sem a Grã-Bretanha não teria capacidade para desenvolver uma eficaz e indispensável política de defesa e de segurança.

Do lado oposto está o cenário de Europa democrática e cidadã, mas para isso é preciso que a sociedade civil europeia acorde para a gravidade do momento e se una numa multitude de iniciativas em defesa de uma União Europeia democrática, solidária e hospitaleira. Hoje, é na Europa do Sul que vemos alternativas políticas mais favoráveis a esta opção e é aqui que pode residir o impulso para uma grande iniciativa europeia pela Europa aberta. A revolta dos cidadãos europeus pode ser factor de mais  solidariedade e não de desintegração. Ainda é possível, mas temo que o tempo comece a escassear.

Antigo Director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia 

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