A responsabilidade por outrem

Num momento em que nos entram sala adentro tantas imagens de rostos mortificados, aniquilados, prematuramente envelhecidos, colhidas no Mediterrâneo, vale a pena convocar a “ética do rosto” de Emmanuel Levinas.

No passado mês de Junho foi anunciada por uma equipa internacional de arqueólogos a descoberta dos destroços de um navio negreiro português, o São José, naufragado ao largo da Cidade do Cabo, na África do Sul, com 400 a 500 escravos acorrentados no porão.

Metade dos escravos − ou “peças”, na gíria do tempo − morreram afogados, meros “prejuízos” inerentes ao negócio. O proprietário do navio, de apelido Pereira, fazia-os transportar da Ilha de Moçambique para o Brasil, onde os que sobrevivessem à travessia de quatro meses iriam penar nas plantações de açúcar do Maranhão (como penavam, em muito menor número, nas da Madeira). O naufrágio do São José deu-se em 1794. A escravatura só foi abolida de facto em todos os territórios sob administração portuguesa na segunda metade do século XIX, em 1869. Não estamos pois a falar de eras de antanho, da expansão marítima dos séculos XV e XVI cuja aura gloriosa das façanhas lusíadas mascara, no imaginário colectivo, as atrocidades cometidas pelos nossos antepassados, das quais poucos à época se apiedaram. Gomes Eanes de Zurara foi excepção precoce, como se comprova no capítulo XXV da Crónica da Guiné, onde descreve, compungido, a distribuição dos escravos em lotes numa praia de Lagos. Não esqueçamos, de resto, que a cidade ideal projectada por Thomas More na sua tão estimada Utopia tinha na escravatura um dos pressupostos do seu correcto funcionamento. A ferida permanece aberta.

Antigas potências coloniais e esclavagistas, Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Países Baixos, bem como outros países europeus, têm responsabilidades históricas face aos fluxos migratórios que hoje desembocam no Mediterrâneo com as trágicas consequências que sabemos. Tais responsabilidade não terminaram com os processos de descolonização, os quais deixaram atrás de si um rasto mortífero de guerras civis e sociedades desestruturadas.

Vem isto a propósito do plano de reinstalação de refugiados da iniciativa da Comissão Europeia (CE) proposto a 13 de Maio, o qual se socorria de um "mecanismo de emergência" previsto no artigo 78 - 3º do TFUE para tornar compulsiva a reinstalação de 40.000 migrantes de nacionalidade eritreia ou síria pelos vários Estados-Membros (segundo critérios judiciosos), e, voluntariamente, de outros 20.000 a serem selecionados pela ONU em campos de refugiados fora do espaço da UE, cuja soma representa cerca de 10% do total de requerentes de asilo em 2014.

O fundamento do plano da CE era dar resposta urgente – ainda que manifestamente insuficiente – a uma crise humanitária que afecta também a Europa e aliviar o fardo da Itália e da Grécia. Diversos líderes europeus deixaram então cair a máscara: metade deles contestaram o carácter obrigatório do acolhimento de requerentes de asilo, fazendo tábua rasa das pungentes manifestações de choque e indignação com que não há muito, diante das câmaras de televisão, tinham instando a UE a agir com vigor e celeridade. Claramente não têm estado à altura das suas responsabilidades históricas e dos valores universais que dizem perfilhar.

O clima de bipolarização verificado levou a que no Conselho Europeu seguinte se deixasse cair a obrigatoriedade e se acordasse que cada Estado-Membro faria uma proposta individual na tentativa de se chegar ao número inicialmente ambicionado. No último loteamento de migrantes, tido no Conselho de Justiça e Assuntos Internos Extraordinário de 20 de Julho, o somatório das propostas não perfez os 40.000 pretendidos – a acolher no prazo de dois anos – embora se tenha ultrapassado ligeiramente o número de 20.000 a serem selecionados em países terceiros. Se foi a Espanha a assumir a posição mais intransigente no seio destes colégios, a verdade é que o comportamento de Portugal tem sido, nos últimos anos, o mais censurável. Em 2014, de acordo com o Eurostat, Portugal foi alvo de 440 pedidos de asilo sobre os quais pronunciou 155 decisões. Destas, 115 corresponderam a rejeições, tendo-se pois decidido positivamente sobre 40 pedidos de asilo, dos quais 20 com estatuto de refugiado e 20 com estatuto de protecção subsidiária, ambos regidos pelas leis europeias. Nenhum requerente foi acolhido por razões humanitárias, o que depende apenas da legislação nacional. A questão toca-nos mais de perto do que à primeira vista podemos pensar. Um estudo da Organização Internacional para as Migrações recolheu, em 2014, 2000 testemunhos de migrantes que usaram o Níger como ponto de passagem para o Mediterrâneo. Esse estudo incluiu 57 pessoas oriundas da Guiné-Bissau, nossa ex-colónia, que viajaram para a Líbia para daí tentarem chegar à Europa.

Apenas a Estónia, a Croácia e a Lituânia se revelaram mais somíticas que o nosso país. A Grécia, com a sua economia e sociedade mergulhadas no pandemónio que se sabe, aceitou 1970 pessoas. E em vizinhos muito mais pobres o esforço humanitário é incomensuravelmente superior: o Líbano acolhe neste momento mais de um milhão de refugiados, a Jordânia mais de meio milhão, a Turquia quase dois. Cumpre, não obstante, realçar que no Conselho de Justiça e Assuntos Internos Extraordinário de 20 de Julho o Governo português emendou a mão e propôs-se acolher 1500 migrantes, num esforço meritório ainda que aquém dos 1700 inicialmente consignados pela CE.

A UE tem vindo a ceder aos ímpetos de renacionalização da política migratória e a afastar-se de uma estratégia fraternal e unívoca. A Agenda Europeia da Migração da iniciativa de Jean-Claude Juncker, aliada à intenção manifestada de reavaliar e eventualmente rever o Regulamento Dublin, configura um passo importante nesse sentido mas suscitou pouco entusiasmo. A política da UE para as migrações deve, naturalmente, distinguir com rigor os que são de facto vítimas da guerra, do terrorismo e da perseguição política daqueles que rumam à Europa por razões económicas – ainda que perfeitamente legítimas, como bem sabem os dois milhões de portugueses emigrados por esse mundo fora.

Como seria de esperar, a resposta europeia a esta catástrofe humanitária tem esbarrado na vozearia populista nutrida de temores infundados, desinformação e preconceitos. Uma rápida excursão às caixas de comentários de alguns meios de comunicação social onde o assunto é tratado providencia uma amostra penosa, mas elucidativa. Os argumentos aí despejados estão ao nível das posições da Frente Nacional, da Liga Norte, do UKIP, do Sr. Viktor Orbán e de todos aqueles que, pretendendo seduzir eleitorado, recorrem ao velho truque de culpar o estrangeiro, de estigmatizar o outro, explorando sentimentos primários de medo e egoísmo.

Apesar das falhas e retrocessos na qualidade de vida de milhões de europeus nos últimos anos, a Europa é ainda o continente mais próspero e desenvolvido do mundo. É torpe sequer pretender que 60.000 migrantes façam colapsar os sistemas de segurança social de um continente com 500 milhões de habitantes. A Europa é também um continente envelhecido. Quando hoje falamos na sustentabilidade da segurança social tendemos a esquecer que todas as medidas que possamos tomar no imediato são precárias e insuficientes para fazer face ao drama do declínio demográfico, pelo que se estes seres humanos precisam da Europa, também a Europa – continente moldado ao longo de milénios por vagas de migrações – irá precisar delas.

Num momento em que nos entram sala adentro tantas imagens de rostos mortificados, aniquilados, prematuramente envelhecidos, colhidas no Mediterrâneo, vale a pena convocar a “ética do rosto” de Emmanuel Levinas, entendida pelo filósofo francês como “responsabilidade por outrem, por aquilo que não me diz respeito” (Ética e Infinito, 1982), a qual nos é solicitada pela visão do rosto do outro – do rosto desarmado, vulnerável, descontextualizado. Responsabilidade que incumbe cada um de nós e que cada um de nós, humanamente, não pode recusar. Porque a aceitação desinteressada desta responsabilidade, deste encargo com o outro, é condição não só de solidariedade e de justiça como da nossa própria dignidade humana.

Escritor, investigador, dirigente do PS-Porto

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