"A questão para Churchill foi sempre evitar a derrota e o derrotismo"

Winston Churchill, acreditava que, tal como o pai, morreria cedo. Esse facto, e querer realizar o que o pai não conseguira na política, ajudam a explicar a mola propulsora da vida do maior estadista do século XX. Quem o diz é o seu mais reconhecido biógrafo.

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Sir Martin Gilbert considera que está a crescer a tendência para novas formas de autocracia e de totalitarismo Daniel Rocha/PÚBLICO

Historiador e académico em Oxford, o primeiro contacto de Martin Gilbert com Winston Churchill data de 1962, aos 26 anos, quando foi nomeado investigador assistente de Randolph Churchill, que preparava então a biografia oficial do seu pai.

Herdou a responsabilidade do projecto em 1968, concluindo uma extensa e minuciosa obra em oito volumes sobre aquele que pouca gente hesitará em dizer que foi o maior estadista do século XX. Em 1991, escreveu "Churchill - a life" (traduzido pela Bertrand) que, apesar das suas mais de 600 páginas, levou o conhecimento de Churchill ao mundo inteiro. A sua obra inclui ainda três volumes dedicados à história do século XX e vários livros sobre a história do povo judeu e do Estado de Israel.

Sir Martin Gilbert esteve em Lisboa para proferir a conferência anual de abertura do ano lectivo do Instituto de Ciência Política da Universidade Católica ("Tocqueville lecture"). Veio falar de Churchill e do seu pensamento político - muito mais reformista e liberal do que a sua imagem de político conservador deixa supor.

PÚBLICO - Passou a sua vida a estudar a personalidade e vida de Churchill. Qual é o factor-chave para explicá-la? O seu nascimento aristocrático? As suas convicções?

Martin Gilbert - Creio que muito se deve à sua relação com o pai. O seu pai foi um "outsider" na vida política do seu tempo, que acabou marginalizado e ridicularizado pela classe política. Morreu muito cedo, com pouco mas de 40 anos. Durante toda a sua vida, Churchill foi movido por uma espécie de sentimento de que haveria de vingar a memória do pai, que haveria de realizar aquilo que o pai não conseguira. Foi assim que, de algum modo, construiu a sua estrutura política, determinado a fazer o que o seu pai não conseguira a partir de um retracto idealizado daquilo que ele tinha defendido e por que tinha lutado. E que era um conceito extraordinariamente reformista e igualitário para o seu tempo, quando a sociedade britânica era ainda profundamente dividida entre ricos e pobres.

Churchill também se convenceu - erradamente - que o seu pai morrera tão novo por causa de uma doença hereditária. Muitos membros da sua família mais próxima também tinham morrido muito novos, o que o levou a pensar que não tinha muito tempo de vida. Interrogava-se se alguma vez chegaria aos 40. Aos 26 anos, escreveu a um amigo dizendo que lhe restava já pouco tempo para fazer o que queria...

Curiosamente, o pai nunca mostrou muito apreço por ele. Dizia que apenas tinha jeito para o "show-off".

É verdade. Mas estava muito doente, não tinha muito tempo para pensar no filho... Outras pessoas da sua família não pensavam assim. Uma das irmãs do pai acreditava profundamente nele, antecipando as suas qualidades extraordinárias... Mas o pai não, e isso foi mais uma razão para Churchill querer provar o seu valor.

É possível imaginar Churchill e a sua vida extraordinária ignorando o facto de ter nascido num palácio?

O problema está em que ele nasceu num palácio por acidente. Ironicamente, os seus pais não estavam particularmente bem na vida. Viviam numa casa londrina relativamente modesta...

Mas ele era um aristocrata.

Era. Mas também era meio-americano, a mãe era americana. O seu avô da parte da mãe era uma figura muito interessante e muito impressionante. Creio que ele herdou também esta influência. Muitos dos seus contemporâneos, precisamente os mais conservadores e aristocratas, diziam que o seu grande defeito era ser meio-americano. Que não era realmente britânico. Que tinha essas características muito americanas de levar tudo em frente e também, de alguma forma, essa mania muito americana do igualitarismo, que ele sempre defendeu.

Hoje, as lições da Segunda Guerra são constantemente evocadas por alguns líderes políticos para justificar as suas decisões. A propósito da guerra ao terrorismo ou do Iraque. O Presidente Bush gosta de falar de Churchill. Blair tem, por vezes, um tom muito "churchilliano". Se Churchill regressasse neste momento e olhasse para o mundo o que é que pensaria disto tudo?

Creio sinceramente que algumas coisas lhe dariam grande satisfação. O facto de a União Europeia existir, por exemplo, ele que foi um dos inspiradores do Movimento Europeu. Também acreditava profundamente que o seu país devia exercer uma influência moderadora sobre a política americana. Talvez ficasse um pouco desapontado com [o primeiro-ministro britânico] Tony Blair....

Embora ainda não saibamos - e vamos continuar alguns anos sem saber - se a influência de Blair em Washington não foi no sentido de tentar moderar Bush. Talvez Churchill ficasse satisfeito por ver que Blair tentou usar a influência britânica no sentido em que ele próprio achava que ela devia ser usada...

Como é que ele veria a forma como os políticos, não importa se de direita ou de esquerda, gostam de evocar o seu exemplo? Isso decorre apenas do facto de ele ter ganho a guerra?

Creio que há alguma compreensão errada sobre aquilo que ele realmente fez e também sobre aquilo que ele próprio considerava que tinha realizado de mais importante. Ele pensava que o seu maior êxito não era ter ganho a guerra. A partir de Janeiro 1943, deixou de se preocupar com isso porque sabia que a guerra seria ganha, mesmo que com muito sofrimento e muitas batalhas terríveis. A questão, para ele, foi sempre evitar a derrota e o derrotismo: impedir que o seu país viesse a ser dominado por Hitler, por uma invasão externa, ou pelo derrotismo e as divisões internas.

Na Segunda Guerra, Londres foi bombardeada noite após noite, 35 mil pessoas perderam a vida nestes bombardeamentos. Era a moral do país que estava permanentemente em risco. O que Churchill pensa que fez realmente de importante foi conseguir persuadir o povo britânico de que deveria resistir sempre, que a rendição não era aceitável, que devia manter-se fiel aos seus ideais, os mesmos ideais que o tinham levado a declarar a guerra a Hitler.

Hoje vivemos uma situação completamente diferente.

Valeram-lhe as suas convicções muito fortes, embora tenha mudado algumas vezes de partido.

As suas convicções eram, de facto, muito fortes. Quanto aos partidos, o que acontecia era que, muitas vezes, decidiam em função de considerações políticas destinadas a manter o poder ou ganhá-lo, pouco interessados em convicções. Isso irritava-o. Quando foi membro do governo liberal durante a Primeira Guerra e tentou levar a cabo uma reforma social muito avançada, as objecções vieram do seu próprio partido, que na altura estava na esquerda do espectro político.

A verdade é que os partidos nunca foram um bom veículo para ele. É interessante que, durante a Segunda Guerra, ele tentou convencer os dois partidos - conservadores e trabalhistas - a adoptar uma política social para o pós-guerra verdadeiramente radical. Por exemplo, a criação do Serviço Nacional de Saúde como uma decisão não partidária ou bipartidária, porque era isso que a sociedade exigia depois da guerra. Em 1945, depois da guerra, os dois partidos decidiram passar à guerra partidária e abandonar o consenso...

Foi por isso que ele perdeu as eleições....

Depois da guerra quem é que queria os conservadores? E ele fora precisamente o maior opositor dos conservadores nos dez anos que precederam a guerra.

À distância é difícil compreender como é que foi derrotado...

Não foi derrotado. O seu partido foi derrotado. Ele tinha liderado um governo nacional com todos os partidos políticos. Mas, quando os dois partidos resolveram regressar à política partidária, não havia lugar para ele. Não era um político de partido nesse sentido. É bom não esquecer que ele nunca foi líder dos conservadores e que, pelo contrário, foi muitas vezes um opositor feroz.

Seria concebível que as nossas sociedades democráticas ocidentais produzissem hoje uma política como a de Churchill?

Penso que sim. O problema hoje, no Reino Unido, é que muita gente não olha para a política como uma profissão apelativa. Não por razões de corrupção, mas porque as pessoas acham que a política não lhes permite ter um verdadeiro impacte na sociedade. Também talvez porque há um muito maior interesse em ganhar dinheiro, em ter sucesso nos negócios. E os políticos, os sérios, têm de ser bastante altruístas. A política não enriquece ninguém, a não ser os políticos corruptos.

É a única razão? Porque quando olhamos para os políticos actuais e olhamos para Churchill há um abismo. Sabem pouco da história e da vida e sabem muito de sondagens e de marketing.

Não sei se serão todos assim. Tony Blair é um político muito bem preparado. Se quer saber, sabe muito de história e creio que lê mais livros de história do que sondagens.

A vida política também mudou profundamente. Antes - embora não fosse esse o caso particular de Churchill -, as pessoas entravam na política depois de terem adquirido uma experiência profissional. Na justiça, nos negócios, nos meios académicos e intelectuais. Chegavam ao Parlamento com um corpo de conhecimentos adquiridos, com experiência e mesmo com autoridade Agora entram cada vez mais jovens. É a sua vida desde o princípio, nunca fizeram nada num determinado campo. Creio que é uma fraqueza.

Mesmo Churchill, que tinha apenas 26 anos quando entrou no Parlamento, tinha tido cinco anos intensos como soldado e como jornalista e tinha adquirido um conhecimento sobre a condição humana. Foi disso que falou pela primeira vez no Parlamento, das coisas que tinha aprendido nessa experiência.

Já agora, como avalia Blair?

Creio que é realmente impressionante. Ao contrário de muitos líderes políticos, é profundamente religioso, tem convicções profundas e com um sentido muito agudo do bem e do mal. Isso não é muito vulgar hoje em dia. Não creio que seja cínico, como alguns dizem, o que não quer dizer que não seja também muito hábil na política.

Penso que a chave para o entender é a sua convicção no que está certo e errado. Ele acredita também - o que, mais uma vez, hoje em dia não é muito comum - que o Reino Unido tem obrigações perante o mundo, não apenas de derrubar um tirano, mas também de socorrer África... Pensa que é uma obrigação dos países ricos envolverem-se activamente e assumir responsabilidades. Creio que está aqui, de alguma maneira, o caminho do futuro. Blair tem este sentimento de dever moral...

Churchill tinha esse sentimento religioso? Não era religioso.

Não era religioso no mesmo sentido de Blair. Mas tinha um sentimento fortíssimo do bem e do mal, como Blair. E que os governos tinham obrigação de agir sobre as situações injustas para mudá-las.

Hoje discute-se a crise de liderança mundial, especialmente nas democracias. Isto está relacionado com a forma como a democracia funciona, mediatizada ao extremo? Ou é algo mais profundo?

Não sei responder. Creio que estamos a atravessar um ponto de viragem e creio que está a crescer a tendência para novas formas de autocracia e de totalitarismo que podem ser muito perigosas. Vamos precisar de bons líderes para contrariar esta tendência.

Veja o que se está a passar na Rússia, com a supressão de uma série de direitos, incluindo a liberdade de imprensa, que era impensável há pouco tempo quando o comunismo entrou em colapso. A teocracia ganha terreno. Num país como o Canadá, há hoje pressões para que a sharia [lei islâmica] seja introduzida. Isto não fará as sociedades avançar, fá-las-á regredir...

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