A propósito de uma entrevista de Marine Le Pen

A sra. Le Pen acha que as eleições livres não são garantia de representatividade (excepto quando for ela a ser eleita).

Em entrevista ao semanário Expresso do último sábado, Marine Le Pen classificou Durão Barroso como “o chefe dos guardas prisionais. Foi o chefe da prisão, foi o grande general da prisão dos povos, que é o que na realidade é a União Europeia.” Quanto a Angela Merkel, ficámos a saber que “é a directora da prisão”.

Por que motivo deveríamos considerar a UE como uma prisão? O único argumento parece residir em que a sra. Le Pen não concorda com as opiniões dos vários responsáveis da UE, eleitos livremente por governos ou instituições representativas, também elas eleitas livremente. Marine Le Pen declara que eles não “defendem os interesses da Europa”. Diz que são partidários da “ideologia do mundialismo”. Afirma que “o objectivo deles não é defender os interesses dos europeus, é o de criar um mercado único mundial”.

Por outras palavras, o critério de representatividade deixou de ser a eleição livre. Passou a ser a opinião da sra. Le Pen sobre os “verdadeiros interesses” dos eleitores — que ela evidentemente conhece melhor do que os próprios eleitores. É este mesmo raciocínio que ela aplica ao actual Presidente da República do seu país, François Hollande, bem como o seu antecessor, Nicolas Sarkozy: “São ambos prefeitos da União Europeia. Recebem as ordens e executam-nas.”

Ambos foram eleitos livremente pelos franceses. Mas a sra. Le Pen acha que as eleições livres não são garantia de representatividade (excepto quando for ela a ser eleita): “Eles não representam o povo francês porque não defendem os seus interesses, são os representantes da UE em França para defenderem os interesses da casta no território francês.”

Receio que este assunto não seja um detalhe acidental, nem uma força de expressão, num momento de maior entusiasmo, numa entrevista relativamente longa. Em termos de filosofia política, é uma charneira fundamental.

Para as famílias políticas democráticas, o critério de representatividade é a eleição em liberdade. Para as famílias políticas não democráticas, o critério de representatividade reside na “defesa dos interesses do povo” — de que essas famílias são os verdadeiros intérpretes, e que em regra interpretam como um interesse uno, não susceptível de plurais representações no Parlamento.

Não se trata de uma mera abstracção filosófica. As ideias têm consequências. E isso mesmo volta a ser corroborado pela entrevista da sra. Le Pen. O único país que é elogiado, ao longo da entrevista, é a Rússia de Putin:

“A União Europeia é responsável pelo conflito ucraniano, porque se imiscuiu voluntariamente na esfera de influência da Rússia. A UE quer que a Ucrânia entre na NATO [sic], em contradição com os compromissos feitos quando da reunificação alemã e isso foi evidentemente considerado pela Rússia como uma verdadeira agressão geopolítica.”

Não há uma única palavra de condenação da invasão da Ucrânia, nem antes da Geórgia, pela Rússia. Não há uma única palavra de condenação, nem mesmo de apreensão, pelas crescentes restrições das liberdades fundamentais na Rússia. Isso não preocupa a sra. Le Pen, precisamente pela razão que apontei: o seu critério de legitimidade reside na concordância ou não com as suas próprias opiniões, não nas garantias processuais do primado da lei, nacional e internacional, sobre o capricho da vontade e das opiniões particulares.

Escrevi aqui, na semana passada, que estas eram ideias características da velha esquerda e da velha direita autoritárias da década de 1930. Elas reaparecem hoje na linguagem do Syriza, na Grécia, e da Frente Nacional, em França. Este reaparecimento da linguagem revolucionária pode passar despercebido em certas culturas políticas que, por cortesia, não desejo qualificar. Mas não passa despercebido nos países que têm uma memória recente das consequências reais da vitória das linguagens revolucionárias.

Esse é seguramente o caso das democracias da Europa central e oriental. Ainda na quarta-feira passada, sob os auspícios dos embaixadores da Letónia e da Polónia em Lisboa, o IEP-UCP acolheu mais de 12 outros embaixadores europeus, num total de 22 delegações de várias embaixadas, bem como do nosso secretário de Estado para os Assuntos Europeus.

Num salão apinhado de estudantes, discutiu-se “A UE e a Rússia”. Havia diferentes opiniões e diferentes propostas. Mas nunca se ouviu falar da UE como prisão, nem dos seus responsáveis como guardas prisionais. Falou-se, em contrapartida, de liberdade sob a lei, de governos que prestam contas aos parlamentos, bem como da Magna Carta de 1215. São temas literalmente desconhecidos pela sra. Le Pen e o sr. Putin.

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