A Nova Iorque de Bill de Blasio tem lugar para todos, com ou sem documentos

Uma das bandeiras do novo mayor é a atribuição de um cartão de identificação aos imigrantes que entraram no país sem documentos. “A cidade de Nova Iorque também é a vossa casa, e nós não vamos forçar nenhum dos nossos habitantes a viver nas sombras.”

Foto
Bill de Blasio venceu as eleições com 73,3% dos votos Spencer Platt/AFP

Lavam pratos nas cozinhas dos restaurantes, cosem roupas em fábricas têxteis, cuidam dos jardins, lavam escadas em edifícios e preparam as refeições de milhões de nova-iorquinos. A esmagadora maioria dos 500 mil imigrantes que chegaram à grande metrópole norte-americana sem documentos emitidos pelo Governo dos EUA trabalha. E trabalha muito. Mas têm medo de apresentar uma queixa na polícia se forem assaltados ou espancados, porque qualquer contacto oficial com as autoridades pode acabar num processo de deportação.

O problema foi reconhecido pelo anterior mayor de Nova Iorque, o magnata Michael Bloomberg, mas o novo responsável pela cidade parece estar apostado em resolvê-lo. Bill de Blasio, o homem cuja agenda já lhe valeu a alcunha de “Red Bill” pela ala mais conservadora, apresentou neste mês o seu programa para os próximos quatro anos, marcado por duas ideias principais: encurtar o fosso entre os mais ricos e os mais pobres e não tratar os imigrantes sem documentos como criminosos.

“Quero dizer a todos os meus vizinhos nova-iorquinos que não têm documentos: a cidade de Nova Iorque também é a vossa casa, e nós não vamos forçar nenhum dos nossos habitantes a viver nas sombras”, declarou o novo mayor, num discurso no LaGuardia Community College, uma das mais de 1000 instituições de ensino financiadas pelo Estado federal norte-americano que permitem o acesso a um ensino superior a muitos jovens das classes mais desfavorecidas.

A ideia é criar um cartão de identificação especial que conceda alguns direitos aos imigrantes sem documentos – uma espécie de meio-termo que, de forma paradoxal, poderá tirar centenas de milhares de pessoas do limbo. Blasio, eleito com uma esmagadora maioria de 73,3% em Novembro de 2013 contra o candidato republicano Joe Lhota, diz que apenas pretende tratar de um problema que já existe: de acordo com os números da organização sem fins lucrativos Fiscal Policy Institute, cerca de 70% dos imigrantes não registados têm um trabalho – uma relação superior à dos habitantes nascidos em Nova Iorque (60%) e à dos residentes nascidos noutros países (64%).

“Vamos proteger os quase meio milhão de nova-iorquinos sem documentos, cujas vozes muitas vezes não são ouvidas. Vamos dar as mãos a todos os nova-iorquinos, independentemente da sua situação legal – através da atribuição de cartões de identificação municipais, que estarão disponíveis a todos os nova-iorquinos até ao final do ano –, para que muitos filhos e filhas da nossa cidade não fiquem sem acesso a uma conta no banco, a um empréstimo, a um cartão de acesso a bibliotecas, apenas porque não têm identificação”, prometeu o novo mayor de Nova Iorque.

À semelhança de outras promessas que levaram Bill de Blasio ao cargo mais importante da cidade – como o alargamento da educação pré-escolar a todas as crianças, atrelado a um aumento de impostos para quem ganha mais do que 500 milhões de dólares (quase 365 milhões de euros) por ano; ou o aumento do salário mínimo dos funcionários públicos à margem de uma eventual aprovação no Congresso com reflexos em todo o país –, os cartões de identificação para imigrantes sem documentos foram alvo da fúria dos sectores mais conservadores, mas também encontraram resistência no Partido Democrata – o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, democrata e amigo de Bill de Blasio, chegou a classificar alguns pontos do seu “programa progressista” como “repugnantes”.

Brad Blakeman, presidente do grupo de pressão da direita americana Freedom's Watch e antigo conselheiro de George W. Bush, não tem dúvidas de que dar um cartão de identificação a um imigrante sem documentos é “uma péssima ideia”. “Estou estarrecido com a ideia de ele poder ser tão imprudente que abra a cidade à legitimação de cidadãos ilegais”, disse Blakeman na estação Fox News.

E nem todos foram tão brandos nas críticas. Daniel Greenfield, da revista online FrontPage, financiada pelo grupo conservador David Horowitz Freedom Center, escreveu que de Blasio “mostrou que não tem nada para oferecer às pessoas trabalhadoras”. “O seu discurso está repleto de recompensas para membros de gangues, imigrantes ilegais e defensores do Estado social. Não oferece nada a não ser mais criminalidade, mais impostos, bancarrota e uma via rápida para Detroit”.

O principal problema, segundo os críticos da proposta, é que atribuir um cartão de identificação a um imigrante sem documentos é o mesmo que “tentar minar a lei federal de imigração”, como defendeu Steven Camarota, director do Center for Immigration Studies, um grupo sem fins lucrativos conservador, num artigo publicado no The New York Times. “Recompensar a violação da lei desta forma faz com que os imigrantes legais pareçam idiotas por terem cumprido as regras”, argumenta Camarota.

Mas a ideia não é nova. Cidades como New Haven, no estado do Connecticut, ou Los Angeles e São Francisco, na Califórnia, têm programas semelhantes. Os seus apoiantes alertam que o cartão proposto pelo mayor de Nova Iorque pode transformar-se num estigma, se não servir a mais ninguém para além de imigrantes sem documentos. “É preciso que este cartão seja desejado por todos os cidadãos de Nova Iorque”, defende Javier H. Valdes, um dos directores da associação Make the Road New York, que tem lutado pela introdução destes cartões na cidade. É por isso as organizações de defesa dos direitos dos imigrantes estão a apresentar propostas como a possibilidade de os cartões de identificação darem acesso a descontos em lojas, por exemplo.

Com um esmagador apoio no Conselho da Cidade de Nova Iorque, a proposta do novo mayor tem aprovação quase certa, e os democratas dizem-se fartos de esperar por uma reforma da lei da imigração que está guardada nas gavetas do Congresso. “Não vamos esperar que um Governo federal aprove uma reforma”, disse Carlos Menchaca, presidente da Comissão de Imigração do Conselho da Cidade de Nova Iorque, numa reacção pública ao discurso de Bill de Blasio. Ao seu lado, Linda Sarsour, directora da Associação Árabe-americana de Nova Iorque, repetiu a queixa e deixou uma promessa: “Estamos fartos de que o Congresso nos falhe, a nós e às nossas famílias. E em Nova Iorque não ficamos à espera das decisões do Congresso.”
 

Sugerir correcção