“A mentira na política mudou e ainda não sabemos lidar com isso"

Ideia foi defendida por Ruth W. Grant, no colóquio Mentira e Hipocrisia na Política e Vida Moral, da Universidade do Minho, sobre o qual pairaram Trump e a pós-verdade. Investigadora admite que a “mentira à prova de factos” não seja um exclusivo dos EUA, onde tem sido uma arma da direita.

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Ruth W. Grant é investigadora da Universidade de Duke, no estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos Adriano Miranda

“Há uma grande mudança na mentira, e a diferença é quantitativa mas também qualitativa”, avisa Ruth W. Grant, uma investigadora norte-americana que reflecte sobretudo acerca das questões da moral política: hoje recorre-se mais à mentira — os fact checks feitos pelo site PolitiFact ao discurso de Trump nas presidenciais americanas apontam para 76% de falsidades; e a mentira, quando exposta, agora sobrevive ao confronto com os factos, resiste bem ao embate.

Na conferência de encerramento que levou ao colóquio Mentira e Hipocrisia na Política e Vida Moral, uma iniciativa do Grupo de Teoria Política do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho que, quinta e sexta-feira, reuniu cerca de 40 especialistas de 15 países em Braga, Ruth W. Grant recordou que, até aqui, as mentiras em política tinham sobretudo que ver com aquilo por que quem as proferia se assumia ou não responsável, diziam mais respeito a avaliações do que a factos objectivos e mensuráveis. Mais importante do que isso, quando apanhado em falso, o político passava por um momento de embaraço público, sentia-se obrigado a retractar-se e, não raras vezes, a demitir-se. Isso mudou, sublinha a investigadora da Universidade de Duke, na Carolina do Norte.

Na conferência que fez em Braga e na conversa que manteve com o PÚBLICO à margem do evento, Ruth W. Grant sustentou que, “agora, quando confrontado com os factos, o político continua a mentir” e os outros políticos, a comunicação social e a sociedade em geral ainda “não sabem como lidar com isso”. Grant fala de “uma mentira à prova de factos”. E deu alguns exemplos: os republicanos dizem que há pessoas pagas pelos democratas para estarem numa multidão que se manifesta; os media investigam e dizem que não há nenhuma prova de tal ter acontecido; os republicanos respondem que também não há prova do contrário…

O mesmo vale para algumas das coisas que Donald Trump disse nos últimos meses sobre mexicanos e violações, sobre muçulmanos e festejos pelos atentados de 11 de Setembro, sobre estatísticas criminais e raças: são desmentidas pelos factos? Não interessa. O então candidato não deixou de insistir nelas, por vezes pedindo depois que não o tomassem à letra. E os próprios media, sublinha Ruth W. Grant, ficaram, como o Wall Street Journal, a discutir o que fazer. Acusar Trump, a todo o momento, de estar a mentir, sacrificando o distanciamento e imparcialidade caros ao jornalismo? Reservar a qualificação “mentira” para as situações em que o jornal achasse que o candidato estava deliberadamente a tentar enganar as pessoas acerca de algo específico? Entretanto, nota Ruth W. Grant — concordando que este é o aspecto mais pessimista na sua análise —, as atoardas que um dia pareceram “ultrajantes” são repetidas e somam-se a outras do mesmo calibre, que se vão sucedendo, banalizando-se e deixando de indignar tanto quem antes muito se revoltava…

Poder-se-ia pensar que o que está aqui em causa é apenas a “personalidade” de Trump — o que não nos dispensaria de incluir na equação quem o elegeu. Mas Ruth W. Grant receia que seja mais do que isso. Está convencida de que esta nova forma de mentir, nos Estados Unidos, é uma tendência anterior a Trump, ainda que com origem no campo político deste: a direita republicana. Dá como exemplo o negacionismo republicano acerca das alterações climáticas, que não esperou por Trump para se manifestar.

E Grant pretende debruçar-se mais sobre a campanha do “Brexit”, acerca da qual lembrou, no colóquio, que boa parte dos argumentos esgrimidos a favor da saída do Reino Unido da União Europeia, nomeadamente aquilo que a União alegadamente impunha e com que resultados, não foi rigorosa, quando não ostensivamente falsa.

No final da conferência de Ruth W. Grant, quando se abriu o debate com a assistência, sugeriram-se outros exemplos de “verdade à prova dos factos”— como a do alegado arsenal de armas de destruição maciça, que serviu para justificar a guerra do Iraque.

Além do nome de Donald Trump — muito evocado, em associação improvável, no mesmo colóquio, com os nomes de Maquiavel, Bentham, Santo Agostinho, Locke, Rosseau ou Kant —, uma expressão pairou sobre os debates e entrou no debate: “a pós-verdade”. A Oxford Dictionaries elegeu-a palavra do ano de 2016, justamente por causa de Trump e do “Brexit”, e definiu-a como o conceito que designa as circunstâncias em que os factos objectivos são menos preponderantes na formação da opinião pública do que as paixões e convicções.

Ruth W. Grant também se referiu ao conceito, ainda que receie que este possa dar a ideia, errada, de que até agora a política primava pela racionalidade. E citou estas afirmações: “O problema com os media é que estão a levar Trump à letra, em vez de o levar a sério.” “Já não há factos, há factos que Trump e os seus apoiantes partilham.” “Querem fact checks, vão ao meu website.” Estas frases, invocadas por Grant, foram ditas por dois responsáveis da campanha de Donald Trump e pelo próprio candidato.

A investigadora confessou que, na última campanha presidencial americana, sentiu que “a política vai ser cada vez mais assim”. A própria Internet, com o seu universo contraído pelo algoritmo de pesquisa do Google, e a prevalência crescente das redes sociais — os nossos amigos — como fonte de informação, às vezes exclusiva, fecha-nos cada vez mais numa “bolha” e exponencia a “polarização”, que a académica vê cada vez mais acentuada.

Grant descreveu um país em que os eleitos dos dois maiores partidos deixaram de almoçar juntos no parlamento, de confiar uns nos outros, para fazerem da oposição recíproca um fim em si mesmo. Referia-se aos Estados Unidos, onde considera que a eleição de Obama, há oito anos, evidenciou a existência de dois países cada vez mais desligados. O próprio campo mediático, que sempre ajudou a construir essa base comum, surge cada vez mais filiado num dos campos políticos, Fox News de um lado e NBC no outro. A ausência de uma percepção comum da realidade e de uma linguagem comum torna a mentira “mais aceitável” e a política, no contexto democrático, “menos viável”, alertou Ruth W. Grant.

Há 18 anos, escreveu Hypocrisy and Integrity: Machiavelli, Rousseau and the Ethics of Politics (Chicago Press), em que defendeu uma tese polémica: que a hipocrisia política, em certas circunstâncias, pode ser mais construtiva do que um comportamento cegamente determinado por princípios. Contou em Braga um caso da sua vida pessoal. Há muitos anos, a escola dos filhos decidiu que, por estar lotada, precisava de mudar parte das crianças para outra escola. “É das coisas que mais perturbam as crianças e a rotina familiar. Ninguém queria que fossem os seus filhos a mudar de escola. Mas encheu-se uma sala de gente e ninguém disse isto. Avançaram com outros argumentos, políticos, como o preço do transporte do autocarro escolar, a diversidade sociocultural que era preciso assegurar nas escolas… Fomos todos hipócritas, mas o assunto resolveu-se. Se alguém tivesse dito que não queria que os seus filhos mudassem de escola…”

Há 18 anos, Ruth W. Grant defendeu a hipocrisia por achar que o perigo vinha sobretudo dos fundamentalistas dos princípios e de uma ideia de integridade. Hoje preocupa-se sobretudo com o cinismo e o desrespeito pela verdade. É pragmática, mas não relativiza tudo. Discorda de Hannah Arendt, que dizia nunca ter visto ninguém apresentar a sinceridade como uma qualidade política. Grant pensa que as mentiras não são todas iguais e que, por princípio, mentir é errado, mesmo na política, em que pode ser necessário. Necessário mas errado? Para Ruth W. Grant, a política democrática só é possível com confiança, escrutínio e sentido da realidade comum. A mentira, ou a ausência de verdade, corrói qualquer um destes pilares. E acrescenta: “Mentir pode ser a escolha boa, do ponto de vista técnico, mas, quando suja as mãos, o político tem de o admitir. Maquiavel dizia que ‘o Príncipe tem de aprender a não ser bom’, mas isso não significa que o standard do ‘bom’ não exista.”

"O que é a pós-verdade?"

Pedro Martins, do Grupo de Teoria Política do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, assume que o colóquio anual de história da Moral e da Filosofia Política que aquele grupo organiza tem sempre o cuidado de adoptar temas com forte ligação à actualidade, mas ressalva que a mentira na política “é algo tratado, e praticado, desde sempre”. Admite, porém, que “a Net, as redes sociais, as circunstâncias do nosso tempo” estejam a criar “novos modelos de avaliação política, em que o que interessa já não é a verdade dos factos mas a capacidade de mobilização”. E foi mesmo sobre isso que se convocou a discussão de sábado, a derradeira iniciativa programada no âmbito do colóquio que visou alargar parte do debate académico ao público em geral: na biblioteca municipal de Braga, dois professores do Grupo de Teoria Política, João Rosas e Giuseppe Ballacci, e uma investigadora da área dos media, Felisbela Lopes, foram desafiados a arriscar respostas para questões como o que é a pós-verdade, importam os factos para formar a opinião pública ou é o público indiferente à verdade.

 

Notícia alterada: acrescentado o último parágrafo e a referência ao Grupo de Teoria Política no segundo.

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