A maldição da social-democracia

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1. Não foi preciso a brutal crise financeira de 2008 para que o futuro da social-democracia fosse objecto de profunda reflexão. Escreveram-se páginas e páginas sobre o seu declínio nos anos de estagnação económica nas democracias desenvolvidas, na sequência dos choques petrolíferos dos anos 70 que puseram fim aos “trinta gloriosos” do pós-guerra e que permitiram que a social-democracia criasse o modelo social europeu que, no essencial, ainda sobrevive até hoje.

Os anos 1980 foram marcados pela resposta da direita à crise, com a revolução liberal-conservadora de Thatcher e de Reagan. A queda do Muro e o fim da Guerra Fria, abrindo os mercados mundiais, ainda permitiu ao centro-esquerda um regresso em força ao poder, graças à “terceira via”, anunciada como a alternativa ao neoliberalismo para enfrentar os desafios da globalização de uma forma mais justa e mais inclusiva. Na União Europeia a 15, chegaram a liderar 13 governos. As reformas do Estado Social foram, em muitos casos, obra desses governos, confrontados com a necessidade de torná-los sustentáveis e de porem termo à “subsidiodependência”, acentuando a responsabilidade individual. Em Abril de 2013, numa das últimas reuniões do movimento criado por Bill Clinton e Tony Blair nos anos 1990 para uma “governação progressista”, Patrick Diamond, académico britânico e conselheiro do Labour, escrevia no Guardian: “A crise financeira de 2008 mudou tudo (…), as ondas de choque puniram os governos de esquerda perante o desemprego crescente, a bancarrota de inúmeras empresas e o aumento da dívida pública.” Para acrescentar que “a vaga da globalização deixara de funcionar no interesse da maioria”, aumentando exponencialmente a desigualdade de rendimentos. Até à crise, o crédito fácil e barato permitiu compensar a perda de rendimentos das classes médias. Com a crise, essa almofada acabou. A desigualdade não ficou resolvida com a “terceira via” e é hoje o maior desafio que se coloca ao centro-esquerda.

2. Na zona euro, onde a Alemanha resolveu aproveitar a crise do euro para endurecer as regras da sua governação, o dilema do centro-esquerda é ainda mais radical. Encontrar uma alternativa à austeridade tornou-se uma extrema dificuldade. Pouco a pouco, forças políticas que estavam na margem do sistema, à direita e à esquerda, foram ocupando o terreno que a social-democracia ia deixando vago por falta de alternativa. Portugal não é excepção.

Na Grécia, caso extremo, o PASOK desapareceu, depois de quarenta anos como um dos dois partidos de governo. Caiu de 40% de votos em 2009 para uma votação de um dígito nas duas últimas eleições, abrindo espaço ao Syriza que, por sua vez, se rendeu com uma facilidade espantosa à doutrina de Berlim. Na vizinha Espanha, o PSOE não desapareceu com a derrota de Zapatero em 2011, mas está entalado entre o Podemos de Pablo Iglesias e o PP de Mariano Rajoy, que já pode contar com um crescimento invejável da economia. O actual líder do PSOE, Pedro Sanches, tem de combater em duas frentes: a crítica às políticas do Governo de direita e a demarcação em relação a uma alternativa à sua esquerda, que diz aquilo que as pessoas querem ouvir. Quando Jeremy Corbyn foi eleito líder do Labour, Pablo Iglesias, o líder do Podemos, escreveu um artigo no The Guardian intitulado: “Bem-vindo ao combate europeu contra a austeridade”. Nele denuncia o fracasso da “terceira via” e a incapacidade dos partidos sociais-democratas para garantir uma alternativa ao neoliberalismo. Haverá eleições em Espanha em Dezembro que serão um teste ao PSOE.

Na Alemanha, o destino do SPD também não é brilhante, embora os problemas já venham de antes da crise. Não compreendeu que a unificação era imparável. Só voltou ao poder em 1998, quando Gerhard Schroeder chegou à liderança trazendo consigo uma visão mais “amiga dos empresários”, mais reformista e mais pragmática. Fez reformas profundas que prepararam a Alemanha para enfrentar a globalização económica mas que chocavam de frente com a velha doutrina social-democrata. Nunca mais recuperou embora seja hoje (como em 2005) o parceiro da “grande coligação” liderada por Merkel. Em matéria do euro, praticamente não se distingue da chanceler. Até os nórdicos, onde a social-democracia teve a sua mais longa vida, construindo um modelo quase perfeito para gerir o capitalismo mantendo a igualdade, vêem-se hoje constrangidos a aceitar doses muito mais elevadas de desigualdade social. François Hollande rendeu-se à ortodoxia em versão doce. O PS francês odeia Manuel Valls e Emmanuel Macron, as duas figuras reformistas do governo, mas não tem alternativa. No Reino Unido, a inesperada vitória de Corbyn, um radical que defende políticas que já se julgavam enterradas, não deixa de inspirar alguns parceiros europeus como uma saída tentadora. Figuras gradas do Partido Socialista, como Manuel Alegre, saudaram efusivamente a sua eleição, mostrando até que ponto os socialistas, depois desta derrota, têm visões diferentes sobre o futuro.

3. Vistos a partir dos nossos parceiros europeus, os resultados das eleições portuguesas são bastante mais fáceis de ler. Venceu um governo que aplicou uma dose maciça de austeridade, o que é uma façanha à luz da vulnerabilidade que domina a paisagem política de muitos países europeus. Perdeu o centro-esquerda, que se apresentou com um programa anti-austeridade, mesmo sem pôr em causa as regras estabelecidas pelo Tratado Orçamental. Tudo o resto, desde a perda da maioria da coligação até à peregrina aritmética segundo a qual a esquerda ganhou (não se podem somar laranjas com bananas), é visto apenas do prisma da estabilidade que, em Bruxelas e nos mercados, parece estar assegurada quando os partidos europeus (PSD, PS e CDS) ainda representam quase 70% na Assembleia da República. Basicamente, é esta a leitura que interessa.

Mas a pergunta continua a ser: o que é que a social-democracia defende em tempos duros e exigentes como aqueles que hoje vivemos? A resposta ainda não é convincente. António Costa, se mantiver a liderança, tem de deixar muito claro onde é que se situa o PS, resistindo aos cantos de sereia de uma extrema-esquerda que acreditou que podia chegar ao poder à boleia e não nas urnas. E a coligação vai ter de aprender o que é e como se consegue um compromisso. 

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