A longa travessia das iniciativas de cidadania europeias

Em dois anos, apenas duas propostas foram discutidas pela Comissão — e foram ambas recusadas. Mais polémica foi a recusa em discutir uma contra a parceria de comércio transatlântica (TTIP).

A União Europeia quis dar uma prenda aos seus cidadãos: o direito de pedirem medidas à Comissão Europeia. Esta foi uma das inovações do Tratado de Lisboa (2007): com um milhão de assinaturas recolhidas em mais de sete países ao longo de um ano, era possível levar uma iniciativa de proposta legislativa a ser discutida pela Comissão Europeia.

Mas a realidade acabou por ser um pouco diferente. De 45 iniciativas apresentadas desde o início formal do programa de Iniciativas Europeias de Cidadãos (ECI), em 2012, apenas duas foram mesmo discutidas pela Comissão: 23 não conseguiram o número de assinaturas no prazo limite, ou os organizadores retiraram-nas, e 20 foram rejeitadas pela Comissão, segundo dados de um grupo de organizações não governamentais (ONG) chamado Campanha ECI, que estudou o que aconteceu com as primeiras propostas para sugerir alterações.

Carsten Berg, coordenador da Campanha ECI, apontou, numa conversa telefónica com o PÚBLICO, vários problemas no modelo como funciona actualmente. Um deles é, diz, o grau exagerado de exigência da Comissão, que recusa a esmagadora maioria das iniciativas.  

Estas têm de cumprir alguns critérios: têm de estar dentro dos quadros de competência da Comissão Europeia, não podem violar os valores fundamentais da UE, nem ser “abusivas”, “vexatórias” ou fantasistas”. 

A Comissão recusou, por exemplo, três iniciativas para protecção animal reforçada (argumentando que a competência é dos Estados-membros e não de Bruxelas), a auto-abolição do Parlamento Europeu ou a instituição de um referendo europeu (por não ter poder para reformular os tratados), e ainda outra pedindo o fim do nuclear na Europa (por ir contra um tratado europeu sobre o nuclear).

No entanto, a recusa que causou mais polémica foi recente: a da petição para o fim das negociações da Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento (TTIP), já que é justamente a Comissão, através da comissária do Comércio, Cecilia Malmström, a encarregada das negociações, seguindo as orientações do Conselho Europeu, que junta os governos da UE.

Entre as queixas dos promotores do movimento Stop TTIP está uma das questões mais polémicas associadas ao tratado: a potencial criação de um sistema de arbitragem para resolver disputas à margem dos tribunais dos Estados-membros. Estes acordos “dariam poderes inéditos às empresas e ameaçariam de facto a democracia, o Estado de direito, a protecção do ambiente e dos consumidores.”

Os organizadores dizem que a petição recolheu mais de um milhão de assinaturas em apenas dois meses (um recorde) e disputam a rejeição, tendo-a já levado ao Tribunal Europeu de Justiça. O argumento da Comissão para a recusa era de que a proposta tem de ser feita de um modo positivo (propondo uma lei) e não negativa (tentando impedir uma acção legislativa).

“A Comissão funciona como juiz e júri”, critica Berg, e no caso do TTIP “há claramente um conflito de interesses” – a Comissão não quer discutir uma questão que tem já em marcha e que a iniciativa pretendia ver discutida, diz.

Água e embriões
Até agora, apenas duas iniciativas recolheram assinaturas suficientes e foram aceites para discussão de proposta legislativa pela Comissão – e ambas foram, depois disso, recusadas.

A primeira, em Fevereiro de 2014, foi promovida pela Federação Europeia dos Sindicatos dos Serviços Públicos e pedia que o acesso à água fosse um direito. A Comissão discutiu a questão e, embora tenha recusado propor uma lei de “direito à água”, levou a cabo uma consulta pública para a melhoria do aprovisionamento da água potável e prometeu mais transparência e controlo dos operadores privados.

A segunda – com o mote “Um de nós”, pedia o fim da investigação em embriões – foi também recusada após discussão. A Comissão respondeu que havia garantias suficientes de que a investigação é feita com ética e sublinhou a importância deste tipo de investigação no avanço da investigação médica. Os organizadores anunciaram que vão recorrer para o Tribunal de Justiça da União Europeia. 

Neste momento há duas propostas que ainda recolhem assinaturas no site das iniciativas: uma pedindo “o fim de empresas testas-de-ferro para uma Europa mais justa”, outra defendendo um New Deal de investimento em crescimento para a Europa.

A Campanha ECI diz que o problema não só a “excessiva exigência da Comissão”. É que os cidadãos têm de estar organizados em grupos de pressão e ter dinheiro – pelo menos 100 mil euros. Promover uma iniciativa não está, pois, ao alcance de qualquer cidadão, mas sim de grupos já organizados e com capacidade de recolha de fundos. O processo de recolha de assinaturas é moroso, e, pior, o sistema de verificação das assinaturas e protecção de dados de quem assina é diferente em cada um dos 28 Estados-membros, já que esta questão foi deixada a cada país decidir.

Outro problema com a recolha de assinaturas é que é necessário dar um número de documento de identidade e, diz a Campanha ECI, 80% dos potenciais subscritores de uma iniciativa suspenderam o processo quando lhes foi pedido o número de identificação. E no formulário de recolha de assinaturas online não há um modo de os promotores das iniciativas ficarem com o email de quem assina – não podendo dar assim follow up da iniciativa. 

A plataforma de ONG espera que estas recomendações sejam tidas em conta, quando for discutida a reforma deste instrumento de participação política, já no próximo ano.

Berg reconhece que este é um desafio único: afinal “trata-se do primeiro instrumento de democracia transnacional no mundo”, sublinha. Mas, se entre quase 50 iniciativas a esmagadora maioria nem sequer foi discutida, as ECI não estão a funcionar. “Se não se tiver cuidado”, alerta, “este instrumento será rapidamente esquecido.”

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