A Líbia não é a causa mas tudo passa por lá

É através da Líbia que os fugitivos das guerras e fomes alcançam a Europa. Mas esta crise não pode ser gerida como uma emergência. É um fenómeno estrutural e a pressão migratória vai acentuar-se

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A Líbia é uma “bomba migratória” às portas da Europa. Tornou-se a placa giratória por onde transitam os milhares e milhares de fugitivos que tentam alcançar o Continente. É a maior onda migratória que a Europa conheceu na sua história recente. Mais de 90% dos migrantes que chegam à costa italiana passam pela Líbia, um “Estado-fantasma” dominado por centenas de milícias em guerra endémica, onde os jihadistas do Estado Islâmico (EI) se estão a implantar e onde, enfim, os traficantes de seres humanos — os novos esclavagistas — gozam de total impunidade negociando com as milícias e pseudo-polícias.

A Líbia constitui uma ameaça estratégica para a segurança da Europa. Tem a maior costa de toda a África do Norte, com 1770 quilómetros, e 5000 quilómetros de fronteiras terrestres com os países vizinhos em áreas desérticas sem qualquer controlo, mesmo no tempo de Muhamar Khadafi.  E se o EI se apoderar de parte da costa líbia?

Antes de cair, Khadafi ameaçou a Europa com uma nova arma de guerra: a chegada maciça de milhares de barcos com clandestinos. Ele controlava os fluxos de migrantes, ora impulsionando-os ora travando-os. Tinha as “chaves da cadeia”, disse alguém. Foi uma arma negocial que utilizou com êxito perante a Itália, até que os acordos comerciais entre Roma e Tripoli reduziram o fluxo de fugitivos.

O que hoje se passa não é só a “maldição de Khadafi”. É um fenómeno de outra dimensão. Declara a um jornal italiano o padre eritreu Mussi Zerai, presidente da associação humanitária Habeshia: “Basta olhar para o que está a suceder neste momento em África. Na Nigéria é o Boko Haram, A República Centro-Africana foi ensaguentada pela guerra nos últimos meses. Na Somália há uma guerra civil desde 1994. Na Eritreia temos uma ditadura sufocante. No Sudão manda o general Omar al-Bashir que tem um mandato de captura internacional e no próprio Sudão do Sul não há paz. Estes focos de conflito são a causa deste fluxo de imigrantes.” Resta acrescentar à lista muitos outros países da África subsariana e, agora, muitos refugiados da guerra síria.

Os fugitivos não morrem apenas no mar. Muitos desaparecem silenciosamente, longe do olhar de testemunhas, ao atravessar as rotas de fuga desde o Corno de África ou o deserto do Sara. “Os emigrados tornam-se numa mercadoria” para os traficantes. “Ficam reféns neste guerra de milícias e pagam um alto preço pelo vazio de segurança”, diz à AFP o geopolítico Karim Bitar. São uma incomensurável fonte de rendimento para as milícias, para os traficantes e, segundo alguns, para os cofres do EI.

Um fenómeno novo
Os europeus estão perante um dilema. Neste momento a prioridade é salvar as vidas dos fugitivos. Por outro lado, é politicamente impossível acolher todos os refugiados. E defrontam-se com um problema novo: a diferença entre refugiados e imigrantes, a que se respondia com diferentes políticas, dilui-se na dimensão do fenómeno, A UE tem afrontado o problema como uma crise temporária. Esta abordagem está ultrapassada.

“A questão dos fluxos migratórios da Africa para a Europa, através do Mediterrâneo não pode continuar a ser gerida como uma emergência”, escreve Marta Dassù, analista italiana e antiga secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros. “Não é uma emergência, é um fenómeno estrutural, determinado por uma série de causas evidentes, do gap demográfico entre as duas margens do Mediterrâneo às condições sócio-económicas de vários países africanos. Se o fenómeno é estrutural, a pressão migratória continuará com números sem precedentes. E não creio que possa haver uma resposta puramente humanitária (uma Europa aberta capaz de absorver crescentes fluxos, quanto mais não seja por razões políticas), nem uma resposta puramente ‘securitária’ (uma Europa fechada capaz de devolver os migrantes ao ponto de partida).”

Fechadas as fronteiras terrestres da Europa, cresceu a rota marítima, com os seus milhares de náufragos. O encerramento é ilusório: provoca o aumento dos clandestinos e fortalece os traficantes. Os fugitivos dizem-se dispostos a morrer para alcançar a Europa — e não é retórica.

O caos líbio
Olhando as opções, o governo italiano considera que a prioridade é a estabilização da Líbia. Sem cooperação líbia não vê como desmantelar as redes do tráfico de seres humanos nem a partida de barcaças atulhadas de homens, mulheres e crianças. Salvar as vidas é um trabalho de Sísifo. Mas é um objectivo realista?

A Líbia tem dois “governos” rivais (e dois parlamentos), um em Tripoli outro em Tobruk — este é o reconhecido internacionalmente. Estão em conversações por intermédio do enviado da ONU, Bernardino Léon. Mas não mostram pressa em chegar a acordo e mesmo um acordo entre eles não significa que o Estado funcione. O Egipto, os Emirados e os sauditas apoiam Tobruk. Tripoli tem a ajuda do Qatar e da Turquia. E os próprios europeus se dividem: Paris parece apostar na carta egípcia e em Tobruk. Roma parece preferir Tripoli. Têm interesses regionais diferentes.

Não parece haver alternativa à abordagem “primeiro a Líbia”. É através da Líbia que a instabilidade africana se descarrega na Europa. Mas ninguém diz como o fazer. Tal como não parece haver alternativa a uma harmonização das políticas europeias de acolhimento e imigração. Será também realista?

“A questão da imigração está a tornar-se para a UE um banco de ensaio tão difícil e delicado como a crise grega”, conclui Dassù.

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