A laicidade “à francesa” não é própria de um Estado laico

Para muitos dos que debateram em Lisboa a introdução da Carta da Laicidade nas escolas francesas, esta é uma laicidade “normativa” e ultrapassada. Para os seus teóricos, a escola é o lugar onde cada um se afasta de si para se entregar ao saber comum.

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Desde 2004 que as adolescentes francesas não podem entrar na escola de lenço na cabeça Charles Platiau/Reuters

Afinal, há muitos significados para laicidade e a defendida e praticada em França origina problemas de integração, o contrário do que defendem os líderes políticos num país que, nos últimos anos, juntou à lei da laicidade cada vez mais legislação que visaria fortalecê-la, como a que proíbe, desde 2004, “símbolos ou indumentária que manifestem ostensivamente uma pertença religiosa” nas escolas.

A maioria dos franceses convidados a participar no colóquio Identidade(s), Integração e Laicidade na Europa discorda. Mas esta é a convicção geral dos oradores do debate organizado pela Associação de Antigos Alunos do Liceu Francês de Lisboa e que começou a ser pensado em 2013, quando o Governo francês tornou obrigatório o cumprimento da Carta da Laicidade nas escolas, incluindo a portuguesa.

“Não há 40 formas de definir a laicidade, há apenas uma, decorrente de ‘laos’, o termo grego para povo, uma população indivisível que partilha um quadro jurídico e político, que trata da mesma forma a liberdade de crença ou de não-crença”, defende filósofo Henri Peña Ruiz, um dos principais teóricos da laicidade na França. A laicidade da Revolução Francesa, de uma revolta travada contra uma monarquia e uma Igreja, que eram o mesmo.

Peña Ruiz acredita que um professor nunca deve revelar aos alunos a sua crença ou o seu ateísmo. É a ideia da escola como lugar de “suspensão” de crenças – e, assim, de identidades – para que no seu interior se aja e se pense apenas de acordo com a identidade unificadora, “a identidade francesa”.

Em teoria, é isto a laicidade, não “a laicidade”, mas “a laicidade à francesa”, como contrapuseram Esther Mucznik, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, Luís Salgado de Matos, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o teólogo dominicano frei Bento Domingues ou até o jurista francês Dominique Rousseau.

Na prática, a laicidade, “no seu sentido contemporâneo”, a francesa ou outra qualquer, é um termo que, na Europa, “é essencialmente posicionada em relação aos muçulmanos, a minorias marginalizadas e de certa forma sem representatividade social”, afirmou AbdoolKarim Vakil, professor no King’s College de Londres.

No arranque do debate, que decorreu segunda e terça-feira na Fundação Calouste Gulbenkain, Ana Lopes Moreira, presidente da Associação dos Antigos Alunos, lembrou um episódio que hoje seria impensável. Quando, nos seus tempos de estudante no Charles Lepierre, “um professor perguntou aos alunos qual era a sua religião, para assim poder preparar actividades”, um aluno ficou na dúvida: “Lá em casa todos protestam, se calhar, sou protestante”, disse. No dia seguinte, foi ter com o professor explicando que tinha perguntando aos pais e, afinal, não era protestante. ‘O que és, então?’ Quando o aluno respondeu que não sabia, o professor disse que não havia problema, ia inscrevê-lo como ‘livre pensador’.”

A laicidade que hoje se exige nas cidades franceses – e que faz com que alunas possam ser impedidas de entrar na escola por usarem uma “saia demasiado longa”, como aconteceu o mês passado na região das Ardenas – não é aquela que contribui para as “identidades do título do colóquio”, disse ainda Abdool Karim Vakil. “A ideia de identidades deveria remeter para pluralidade, mas a laicidade republicana é cega à forma como acaba por pretender uniformizar o diferente”.

A laicidade “à francesa”, que pretende remeter a crença para a esfera privada e proíbe alguns dos seus símbolos nas escolas, e outros nos locais geridos pelo Estado, defenderam oradores como Salgado de Matos e frei Bento Domingues, exclui e remete para guetos, alimenta aquilo que diz pretender eliminar, o comunitarismo.

O abandono do indivíduo
Na ausência de Abdennour Bidar, co-autor da Charte de la Laicité, a carta pendurada em todas as salas de aula francesas, incluindo nas do Liceu Francês, que deveria ter participado no colóquio, o director da escola, Serge Faure, quis refutar algumas ideias e insistiu que a lei de 2004 “surgiu em resposta a um anseio que já existia nas escolas”.

Faure descreve o gesto repetido pelas alunas muçulmanas que tiram o lenço à porta das escolas como o gesto de “abandono do que me caracteriza na comunidade”, um gesto que diz “sou o indivíduo e o individuo constrói-se para lá da pertença comunitária na educação, uma educação para o juízo crítico que se faz no confronto de visões diferentes do mundo”.

O problema, retorquiu o professor Salgado de Matos no painel dedicado a pensar “a pedagogia da laicidade”, é que esse é, muitas vezes, “um acto de submissão, e isso traz muitos problemas”.

Salgado de Matos não vê “futuro nenhum para a pedagogia da laicidade”, conceito que diz estar “evidentemente em crise”, ao contrário da salutar separação do Estado e da religião – diz o católico, autor, entre muitas obras, de A Separação do Estado e da Igreja, uma questão que, em Portugal, só se estabeleceu em definitivo com a democracia e actualmente é em grande parte enquadrada pela elogiada Lei da Liberdade Religiosa, de 2001.

Criticando a “santificação da laicidade que não corresponde ao que se passa nas escolas francesas, e que legitima o discurso da diabolização da mesma laicidade”, o investigador português descreveu a lei francesa de 2004 como “uma fantasia”, baseada numa ideia que fazia sentido nos séculos XVIII e XIX.

Crise de identidade
A “laicidade” não tinha de ser assim, podia “ser acolhedora”, mas, “no esquema francês, cria conflitos entre a República e a religião e leva a uma crise de identidade que é cada vez mais visível”. A prová-lo, afirma Salgado de Matos, está o facto “de os grandes defensores da laicidade serem hoje [a líder do partido de extrema-direita] Marine Le Pen e os senhores bispos”.

Há os factos e há a teoria. Os factos mostram que “houve um despertar maciço de todas as religiões nos últimos anos, religiões que estão hoje na espera pública e não contidas na esfera privada”, afirmou Dominique Rousseau. Ora, isso, defende, “é fruto de algo que a laicidade quis ignorar, o facto de a sociedade precisar de uma transcendência para existir, de uma crença, que pode ser uma religião, a nação, a classe operária”. Foi a religião e isso produziu “um fosso entre este novo despertar e o Estado de direito”.

É por isso que, nas palavras de frei Bento Domingues, mais valia ter “havido uma grande conversa nas escolas e nos bairros a propósito dos símbolos religiosos”. Porque “o caminho escolhido, o do endoutrinamento, não é pedagógico”. Porque querer que cada um abdique de si, individualidade, quando está perante os outros, diferentes, “é levar a que os indivíduos, para se identificarem, tenham de recorrer à vida num bairro segregado dos outros”.

Assim, diz o dominicano, “os sinais religiosos vão servir cada vez como sinais identitários”, e isso é o caminho para “o desastre”, “a auto-exclusão”, por exemplo, das meninas que usam lenço. O contrário de qualquer pedagogia: “O problema é saber se as pessoas se respeitam, não é apontar os diferentes como criminosos, assustar as pessoas por serem ou não serem laicas”.

Os sons e a cidade
Ao xeque David Mounir, imã da Mesquita Central de Lisboa, não faz falta que se oiça o chamamento para a oração (muezzin). “Imagine-se o que seria, às 6h, os vizinhos iam achar que alguém se estava a suicidar.” Já Esther Mucznik gostaria de viver numa cidade “onde se ouvissem os sinos, o muezzin e o shofar, instrumento de sopro da tradição judaica”, e importante “é saber conviver com a diferença, tornar a laicidade um factor de coesão, assegurar a livre expressão baseada nas leis e valores europeus, sem marginalizar os ‘portadores de diferenças’”.

Algo que a actual laicidade francesa, que o constitucionalista Dominique Rousseau descreve como “normativa”, não assegura. O Estado tornou-se laico, diz, e pensou-se que “o mesmo aconteceria de forma automática com a sociedade”. Sem se ter feito “a secularização da sociedade, chegou-se a um ponto em que um Estado neutro quer obrigar os seus cidadãos a comportarem-se de uma forma diferente das suas convicções”, o que é o contrário do que um Estado laico deveria fazer.

Lembrando que o slogan original da manifestação de 11 de Janeiro, que se seguiu aos atentados contra o jornal satírico Charlie Hebdo era “Sou judeu, sou muçulmano, sou polícia, sou Charlie”, o académico francês afirmou que, “na laicidade à francesa, esse slogan não é possível”. “Tu não és judeu, nem muçulmano, és francês, tens de escolher!”, diz o Estado aos cidadãos.

O que sobra à França, defende Rousseau, é avançar para uma “forma relacional de laicidade, em que cada um se reconhece a si próprio e ao outro como diferentes, nas suas religiões, e assim se aceitam, porque nenhum tem uma visão única do mundo”. “Reciprocidade”, seria aqui uma das palavras-chave. Mas não é para isso que a França parece caminhar.

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