A irresistível atracção de uma independência arriscada

Partidários do "não" avisam para as consequências imprevisíveis da cisão do Reino Unido. Mas nacionalistas estão a conseguir passar a mensagem de que a "Escócia será um lugar muito melhor se for independente".

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A campanha já foi descrita como a mais mobilizadora da história britânica Cathal McNaughton/Reuters

Uma multidão corre monte acima sem saber se no topo encontrará a bandeira da vitória ou apenas um precipício. A incerteza não trava o entusiasmo, alimentado pela sensação de que a meta está próxima. Na retaguarda, um segundo grupo grita, tenta convencer os primeiros a parar e a evitar o desastre que, garantem, se avizinha. Na nação de William Wallace e Robert the Bruce, a metáfora é irresistível na tentativa de descrever o fervor que tomou conta da campanha a favor da independência da Escócia, transformando o referendo que Londres imaginava ganho à partida numa hipótese real de, muito em breve, o Reino Unido perder um terço do território e um décimo da população.

A eventual amputação do Reino Unido – união de três séculos que os defensores descrevem como “uma das mais bem-sucedidas da história”, mas que outros vêem como um arcaísmo a precisar, no mínimo, de uma urgente reforma constitucional – terá consequências imprevisíveis e que não se esgotam nas quatro nações que o compõem. Numa Europa onde os nacionalismos voltam a ganhar força, a independência escocesa servirá de alento a outros; num mundo onde os equilíbrios se desmoronam, o redesenhar de velhas fronteiras prevê-se desestabilizador.

Por que parecem então os escoceses dispostos a arriscar tanto, se é verdade, como indicam as últimas sondagens, que a distância entre os que defendem a independência e os que querem manter-se britânicos é muito curta? Ou, como escreveu a Time na última edição, por que vacilam entre “um arranjo que lhes é familiar – o diabo que já conhecem, na óptica dos nacionalistas – e um salto para o desconhecido”?

Haverá motivos para todos os gostos entre os 4,2 milhões que se registaram para votar na próxima quinta-feira, um número recorde (97% da população residente com mais de 16 anos) que culmina uma campanha descrita como a mais mobilizadora da história britânica. Ao contrário do que se poderia imaginar, os séculos de guerras e rivalidade entre Londres e Edimburgo não foram chamados ao debate. Defraudando as expectativas da campanha pelo “não” à independência, também não foram os argumentos económicos que mais cativaram a atenção dos eleitores.

“Os alertas sobre os custos e os riscos da independência foram mais ou menos ignorados pelos apoiantes do ‘sim’”, disse ao PÚBLICO Christopher Whatley, professor de História Escocesa da Universidade de Dundee, explicando que os nacionalistas conseguiram passar a mensagem de que estes receios “são invenções dos políticos de Westminster, dos unionistas e dos media” e souberam centrar o debate “num princípio mais importante: o da autogovernação”. Alex Salmond, primeiro-ministro escocês e força motriz da campanha pelo “sim”, “foi extremamente bem-sucedido a convencer as pessoas de que a Escócia será um lugar muito melhor se for independente. É uma mensagem positiva que, para muita gente, é verdadeira.”

Whatley, coordenador do projecto 5 Milhões de Perguntas, com que a universidade quis ajudar a aprofundar o debate, explica que a favor de Salmond joga “o sentimento de autoconfiança redescoberto nas últimas décadas pelos escoceses”, resultado de um crescimento económico que deve muito às receitas petrolíferas do Mar do Norte e ao abandono da antiquada indústria pesada em favor de outros sectores mais dinâmicos. A isto junta-se um renascimento cultural e o sucesso do governo autónomo, que desde 1999 controla boa parte das políticas públicas, assegurando excepções (como a isenção de propinas nas universidades ou cuidados gratuitos para os idosos) que são extremamente populares.

É irónico, admite o historiador, que o sucesso recente da Escócia – que é também um sucesso da sua aliança com Londres – seja usado como argumento a favor da independência. Mas explica que os nacionalistas souberam usar a seu favor o “sentimento de que a Escócia tem sido ignorada, o que muitas vezes é verdade, e está sub-representada” em Westminster.

Por contraste, os defensores da união insistiram em defender o status quo – até que a subida do “sim” nas sondagens os obrigou a prometer mais poderes para Edimburgo – e tentaram por tudo demonstrar o irrealismo do projecto nacionalista. “A ideia de que a independência tem apenas a ver com dinheiro é suficientemente má. Pior ainda é a ameaça de que uma Escócia independente iria perder a rainha, os mísseis, os cérebros, a BBC, recebendo em troca apenas pobreza e terroristas”, escreveu no Guardian o jornalista Simon Jenkins.

Janan Ganesh, comentador político do Financial Times, acrescenta que não é só a péssima condução da campanha que explica a subida do “sim”. “A verdade crua sobre a união é que os fundamentos que a sustentavam [o império, as forças armadas, as ameaças externas] estão a enfraquecer.” Se em 1970, 40% dos escoceses se definiam também como britânicos, hoje apenas 23% o fazem.

Nos editoriais em que apelam ao voto no “não”, tanto a revista Economist como o FT apontam muitos erros aos cálculos do projecto de Salmond: a união monetária com o que restar do Reino Unido (e que Londres rejeita à partida) iria obrigá-lo a subir impostos e a cortar na despesa; as receitas petrolíferas para suportar o aumento das despesas sociais estão sobrestimadas; as negociações com Londres sobre a divisão da dívida ou do petróleo terão um desfecho menos positivo do que espera.

Argumentos que apelam à razão de muitos eleitores – não é coincidência que a ligeira retoma do “não” nos últimos dias tenha acontecido depois da avalancha de alertas feitos pelas grandes empresas –, mas deixam outros indiferentes. Sobretudo porque o debate se centrou muito em questões ideológicas.

O Partido Nacionalista Escocês, a que os trabalhistas puseram em tempos a alcunha “tories de tartan”, apropriou-se, sob a batuta de Salmond, de bandeiras que pertenceram no passado ao Labour. O seu nacionalismo apresenta-se como moderado – ao contrário de outros nacionalistas europeus, Salmond quer mais imigração – e defensor dos valores sociais de uma Escócia em contraciclo com o caminho político seguido pelo resto do Reino Unido. Recusando o liberalismo que faz escola em Londres, promete aos eleitores uma “Escócia mais próspera e mais justa”, inspirada no modelo norueguês (mesmo que as suas receitas petrolíferas sejam muito inferiores). É essa argumentação que levou a Salmond afirmar, com grande eco junto dos eleitores, que só a independência permitirá impedir a privatização do serviço de saúde.

Os adversários denunciam a manipulação (Edimburgo tem total controlo sobre a saúde), mas, como escreveu Johnathan Freedland na revista New Yorker, “é difícil negar que a Escócia desenvolveu uma paisagem política diferente” de Inglaterra. No artigo, o jornalista recorda que o afastamento começou com Margaret Thatcher, a primeira-ministra que privatizou as indústrias que dominavam a economia escocesa, combateu o poder dos sindicatos, numa política que afectou desproporcionalmente a Escócia operária. Os tories, que ainda em 1955 tinham vencido ali as legislativas, foram erradicados – em 2010 elegeram apenas um deputado.

Cameron, com as suas políticas de austeridade e a sua história de privilégio, acentuou o divórcio ao ponto de as suas intervenções na campanha pelo “não” serem vistas como trunfos para os independentistas. Salmond, com grande efeito político, avisa os eleitores para o risco de uma futura aliança entre os conservadores e os antieuropeus do UKIP, para assegurar que a vitória do “sim” é a garantia de que “nunca mais a Escócia será governada pelos tories”.

A perspectiva conquistou os eleitores tradicionais do Partido Trabalhista, durante muito tempo opositores ideológicos da causa independentista, mas desiludidos com as políticas centristas do New Labour fundado por Tony Blair. Um dos sucessos dos nacionalistas, escreveu a Economist, é que “ao falarem dos tories estão cada vez mais a referir-se a todo o sistema político, que os escoceses criticam tanto como qualquer outro britânico”, dando a entender que, governe quem governar em Londres, os interesses da Escócia não serão tidos em conta. Christopher Whatley concorda: “Westminster é visto, em resumo como pouco disposto a ouvir, distante e não representativo da opinião pública escocesa.”

Da direita e sobretudo da esquerda várias vozes argumentam que a austeridade que dói aos escoceses é a mesma que atinge os ingleses, galeses ou irlandeses, e que as suas exigências – seja mais poder de decisão, seja uma sociedade menos desigual – devem ser resolvidas através de reformas que abranjam todo o Reino Unido. “Percebo o entusiasmo que se vive tanto dentro como fora da Escócia. Mas deste lado da fronteira, espero que os escoceses não desistam ainda desta união estranha, confusa e imperfeita”, escreveu Freedland num artigo para o Guardian, dizendo estar antes de mais “preocupado com o país que eles podem deixar para trás”.

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