A "liberalização" dos socialistas

Há anos que os liberais papagueiam a necessidade de o PS francês se atualizar e deixar-se de Estado social e outras velharias.

Aquele que foi, até segunda-feira passada, ministro da Economia francês, Arnaud de Montebourg, decidiu pôr a boca no trombone e dizer que estava farto de ver os governos europeus submetidos ao “axioma ideológico da direita alemã”, o do “dogma da ortodoxia orçamental”, responsável, segundo ele, por “uma crise económica que só tem precedente na [Grande Depressão] de 1929”. O governo devia “interromper o afundamento económico pela austeridade” (Le Monde, 23.8.2014).

Três outros ministros subscreveram as críticas, juntando-se ao coro de 40-50 deputados da ala esquerda socialista que têm votado contra o governo em orçamentos retificativos e pactos de estabilidade de que se faz a política liberal do blairista (preferem socratista?, é igual) Manuel Valls, o socialista que acha que o “S” em PS “é datado, já não significa nada”. Tinham sido chamados ao governo para tentar impedir a dissidência desses deputados no Parlamento quando, em abril passado, Hollande tirou o coelho Valls da cartola, um homem com a fama de Sarkozy do PS, apresentado como o líder decidido e corajoso que ia salvar os socialistas da hecatombe (basicamente o mesmo que anda a ser dito aqui pelos partidários de António Costa), na velha ideia de que pôr um ator convincente a dizer as mesmas coisas de sempre convencerá as pessoas de que o que diz é diferente.

Dias antes das críticas de Montebourg, um estudo da Henderson Global Investors comprovava que as grandes empresas francesas tinham distribuído pelos seus acionistas no 2.º semestre de 2014 mais 30,3% de dividendos do que em 2013. No conjunto da UE, os lucros distribuídos são 18% mais do que em 2013, 58% mais do que em 2009. E a maior subida registou-se... na banca! Caem os salários e as prestações sociais, a economia em crise – mas os lucros, upa-upa! O governo de Valls fez cortes de 50 mil milhões na despesa pública – para entregar 30 mil milhões de apoio às empresas. “Hollande e Sapin [ministro das Finanças, agora reconduzido] lançam-se aos pés das empresas para que elas invistam na economia real. Mas porque pensam que elas o fariam se os investimentos financeiros são muito mais lucrativos? Os recursos públicos seriam bem melhor utilizados na investigação, na educação e na saúde”, diz o economista Benjamin Coriat (Libération, 20.8.2014).

É verdade que há contradições óbvias entre as políticas propostas e subscritas pelo agora crítico Montebourg como ministro da Economia, nada menos, e a agora anunciada vontade de rutura com a mesma. Mas o que muitos socialistas percebem é que “não foi para nada disto que elegemos o Hollande”, ou, como escreveu a ministra da Cultura, que também rompeu com Valls, que o PS está “renunciar” a “tudo em nome do qual fomos eleitos” (Libération, 26.8.2014). Não fazem mais do que ganhar consciência de como se sentem enganados milhões de eleitores que votaram contra Sarkozy há dois anos. A aposta em Valls deu no que deu: já não há quem não esteja convencido de que Hollande (pior: o conjunto da esquerda) não terá chances algumas nas próximas eleições, em 2017...

Querer convencer os franceses, os europeus no seu conjunto, de que não há alternativa aos cortes, à redução do custo do trabalho e à economia de casino que o neoliberalismo tem imposto, agrava duas crises ao mesmo tempo: a económica (até a Alemanha entrou em recessão) e a da credibilidade dos partidos rotativistas (em França, a direita sarkozista e o PS). Apesar do tradicional vigor da esquerda francesa à esquerda do PS, a extrema-direita racista da Frente Nacional ganha cada vez mais espaço, copiando, como os fascistas faziam nos anos 1930, alguns dos slogans da esquerda (as críticas à política de Bruxelas e à troika).

Valls quis calar os dissidentes (“um ministro não se pode exprimir em tais termos sobre a linha económica do governo e sobre um parceiro como a Alemanha”, Libération, 25.8.2014), Hollande não hesitou em fazer cair todo o governo e substituí-lo por outro ainda mais à direita. Alívio em Bruxelas e Berlim. Há anos que os liberais papagueiam a necessidade de o PS francês se atualizar e deixar-se de Estado social e outras velharias. Pois é o que dá: Hollande arrisca-se a ver o governo chumbado, ou derrotado em votações-chave, e a ter de convocar novas eleições. A extrema-direita espera de braços cruzados. Todas as sondagens dão-na à frente da Direita sarkozista e, claro, do PS. O que levaria a uma de duas soluções: ou a uma coligação das direitas, com a entrada, pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, da extrema-direita francesa no governo; ou uma espécie de bloco central à francesa, mas seguindo o modelo grego ou alemão (socialistas/sociais-democratas reduzidos aos seus piores resultados, parceiros secundários de governos dirigidos pela direita). Eis o que dá a liberalização do PS!

O substituto de Montebourg é um jovem milionário de 36 anos, Emmanuel Macron, o mais liberal dos homens de Hollande. Tinha planeado ir ensinar para os EUA, mas aceitou sacrificar-se pela República. Acha que “o dinheiro não deve ser identitário. É um instrumento de liberdade, sem mais” (Nouvel Observateur, 24.5.2012). Estão a ver o estilo? Os desempregados agradecem o conselho...

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