“A Humanidade já não funciona” no Iémen

A violência no Iémen continua sem sinal de que possa vir a ser refreada brevemente e ameaça não deixar pedra sobre pedra num país dominado por uma guerra com quase dois anos.

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Saida, de 18 anos, é apenas uma dos milhões de pessoas no Iémen que sofrem de subnutrição Khaled Abdullah / Reuters

Os olhos ocupam-lhes a quase totalidade da cara, porque o resto é quase só osso coberto por pele. Os braços e as pernas são pequenas varas frágeis, que parecem estar prestes a quebrar a qualquer momento. As crianças subnutridas tornaram-se o rosto da guerra no Iémen, onde a ONU calcula que 14 milhões de pessoas enfrentem a escassez de alimentos e que mais de 19 milhões estejam privadas de acesso a água potável.

Os bombardeamentos da coligação regional liderada pela Arábia Saudita destruíram grande parte das infraestruturas essenciais – calcula-se que metade das instalações hospitalares não funcione. “O sistema na sua totalidade está a colapsar, os hospitais fecham regularmente, portanto é muito assustador ver como este país, que já era afectado pela pobreza e pela má governação, está a afundar-se de dia para dia”, disse à BBC a chefe da missão dos Médicos Sem Fronteiras, Colette Gadenne.

As crises parecem acumular-se no Iémen. A mais recente é uma epidemia de cólera causada pela falta de acesso a água tratada e que, segundo a Organização Mundial de Saúde, atingiu cerca de 5500 pessoas.

“A Humanidade já não funciona aqui”, disse esta semana o responsável pela missão das Nações Unidas no país, Jamie McGoldrick. “O mundo simplesmente fechou os olhos ao que se está a passar no Iémen.”

A descida do Iémen ao caos dura há já vinte meses, quando as forças rebeldes huthis, apoiadas por partidários do ex-Presidente, Ali Abdullah Saleh, assumiram o controlo da capital, Sanaa, e retiraram o poder ao Presidente, Abd-Rabbu Mansour Hadi, obrigando-o ao exílio. Dizendo recear a queda de um Governo aliado e a sua substituição por um executivo próximo do Irão, a Arábia Saudita decidiu intervir no conflito e, desde Março de 2015, que lidera uma coligação de países do Golfo Pérsico que têm bombardeado posições dos rebeldes.

O país está dividido em duas grandes zonas de influência, controladas pelas facções que lutam pelo poder. Os rebeldes da tribo huthi controlam Sanaa e as regiões a noroeste; a zona sul e o vasto deserto a leste estão na posse do Governo internacionalmente reconhecido liderado por Hadi.

Pelo meio ainda há os territórios controlados pela Al-Qaeda na Península Arábica, considerada pelos serviços secretos norte-americanos a célula do grupo terrorista fundado por Osama bin Laden mais activa actualmente. O Daesh também tem aproveitado o caos no Iémen para se instalar no Golfo Pérsico.

Mais de dez mil mortos

O conflito já fez mais de dez mil mortos, dos quais quatro mil são civis, e desalojou quatro milhões de pessoas. Em apenas um mês morreram 160 pessoas vítimas dos bombardeamentos, diz a Human Rights Watch, que esta quinta-feira lançou um novo apelo aos EUA para retirarem o seu apoio à Arábia Saudita. “A Administração [do Presidente Barack] Obama está a ficar sem tempo para suspender totalmente a venda de armamento à Arábia Saudita ou ficar para sempre ligada às atrocidades de guerra cometidas no Iémen”, disse a investigadora da HRW Priyanka Motaparthy.

No terreno, muitos acusam a coligação regional de não cingir os seus bombardeamentos a alvos militares. Há um mês, um raide aéreo atingiu um funeral em Sanaa, provocando a morte a 140 pessoas e mais de 500 feridos. “Porque haveriam os sauditas de bombardear casas velhas e o mercado que vendia passas?”, questiona, citado pelo The Guardian, Sheikh Ahmad, do conselho municipal de Saada, enquanto mostra os escombros a que o mercado desta cidade no noroeste do país ficou reduzido.

Uma das últimas tentativas para encontrar uma solução política para o conflito caiu por terra esta semana, depois da rejeição do plano de paz proposto pela ONU. O roteiro, que previa a substituição de Hadi por um dos seus vice-presidentes e que, segundo a Reuters, até tinha a aprovação de Riad, foi rejeitado pelo Governo iemenita, que considerou que o documento abria um “perigoso precedente”.

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