A guerra vai vencer as eleições ucranianas

Os ucranianos vão eleger um novo Parlamento imbuídos pelo clima de guerra civil, apostados num caminho nacionalista, pró-europeu e anti-russo.

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A Ucrânia vai a votos enquanto continua a guerra no Leste Dominique Faget / AFP

São comuns as metáforas bélicas em política, mas as eleições legislativas ucranianas deste domingo vão além de qualquer recurso estilístico. O conflito militar no Leste do país terá expressão eleitoral, sob vários prismas, dividindo o país e configurando o principal tema de debate.

Cerca de oito meses depois da queda do ex-Presidente Viktor Ianukovich, os ucranianos vão eleger um novo parlamento, cuja configuração será radicalmente diferente do que ainda permanece em funções. O Partido das Regiões, o suporte do antigo regime, colapsou e os seus deputados vão ser varridos da Rada Suprema, assim como o Partido Comunista, cuja ilegalização chegou a ser ponderada, mas que corre agora o risco de não eleger qualquer deputado.

O partido mais votado será, de acordo com todas as sondagens, o Bloco Poroshenko, fundado pelo actual Presidente, Petro Poroshenko. Mas com os 30% que deverá obter, o partido presidencial terá que procurar parceiros para uma coligação estável. O apoio natural deverá vir da Frente Popular, o partido liderado pelo actual primeiro-ministro, Arseni Iatseniuk, mas vários analistas prevêem que possa não ser suficiente, uma vez que não deverá ir além dos 10%. E aí, a chave pode estar com Oleg Liashko – um populista que está contra qualquer diálogo com os separatistas pró-russos – cujo Partido Radical deverá obter cerca de 10% dos votos. Também o Pátria, liderado por Iulia Timoshenko, poderá alcançar o patamar dos 10%, mas é improvável que Poroshenko aceite um governo com a antiga primeira-ministra, com quem mantém diferenças pessoais.

O país que aguarda o próximo governo está dividido, em guerra, à procura de entrar no mainstream ocidental e ainda com uma situação económica próxima da catástrofe. Talvez por isso não haja diferenças assinaláveis nos principais pontos defendidos pelos partidos mais relevantes. “A grande maioria dos deputados vai ser pró-democrata, pró-Ocidental e pró-Ucrânia”, diz ao PÚBLICO o professor da Universidade de Rutgers, Alexander Motyl.

Há, no entanto, algumas clivagens que podem polarizar o debate. “Como lidar com a guerra e que reformas devem ser adoptadas serão as fontes de maior discórdia”, observa o colunista especializado em Rússia, Ucrânia e espaço pós-soviético da revista World Affairs.

Da batalha para o Parlamento
Fala-se abertamente em guerra na Ucrânia, apesar da assinatura de um cessar-fogo no início de Setembro. Nos combates entre as forças leais a Kiev e os grupos separatistas já morreram mais de 3700 pessoas – 300 das quais durante o período de cessar-fogo. E é este conflito que domina as candidaturas e irá dominar o próximo Parlamento.

Os combates no Leste são, desde logo, uma forma de propaganda política, com praticamente todos os partidos a chamarem “heróis” da guerra para as suas listas. O exemplo mais paradigmático será o de Nadia Savshenko, uma piloto da Força Aérea que é a cabeça de lista do Pátria, apesar de se encontrar detida na Rússia desde o Verão, acusada de matar dois jornalistas russos. Outro caso é o de Iuli Mamchur, um coronel da Força Aérea que se notabilizou ao recusar abandonar o seu posto durante a tomada da Crimeia em Março e que agora concorre pela lista de Poroshenko. Há ainda vários combatentes dos batalhões de voluntários - muitos deles ligados à extrema-direita nacionalista - nas listas a deputados. A competição entre os futuros deputados, disse à Reuters o comentador Mikhailo Pogrebinski, deverá servir para “ver quem é o melhor nacionalista e o maior inimigo da Rússia”.

Moscovo segue com atenção as eleições ucranianas, sabendo de antemão que o novo Parlamento será fortemente anti-russo. No entanto, os próximos tempos podem vir a ser favoráveis para os interesses do Kremlin, que passam pela travagem do caminho da Ucrânia na direcção da União Europeia e da NATO. Um governo fraco seria o ponto de partida para um regresso do descontentamento às ruas e para um afastamento das potências ocidentais. “A Rússia teria mais espaço para exercer influência e alcançar acordos informais com as elites locais, reduzindo assim a probabilidade de uma maior integração europeia”, escreveu Alexander Gabuev do European Council on Foreign Relations. Há também a hipótese de que com Poroshenko, visto como um líder pragmático por Moscovo, será mais fácil alcançar compromissos para o futuro do Leste do país. No entanto, nota Gabuev, “Poroshenko está limitado pela oposição anti-russa”.

A guerra no Leste tem implicações também no universo eleitoral e até no número de lugares no Parlamento. A Rada Suprema é composta por 450 assentos, mas nas eleições deste domingo serão apenas 424 os lugares em disputa, de acordo com a Comissão Central Eleitoral. Uma redução directamente relacionada com a perda dos deputados correspondentes à península da Crimeia – “temporariamente ocupada”, na versão oficial de Kiev – e com os territórios controlados pelos separatistas. Em 14 dos 32 distritos eleitorais das regiões de Lugansk e Donetsk não vão ser abertas mesas de voto, mas mesmo em áreas do Donbass sob controlo ucraniano a abstenção será elevada. Apenas 13% dos eleitores no Leste têm intenção de votar, de acordo com uma sondagem do início do mês, aumentando ainda mais o risco de que os seus interesses estejam sub-representados no Parlamento de Kiev.

Nos territórios ocupados pelas forças pró-russas as únicas eleições que interessam estão marcadas para 2 de Novembro, organizadas pelos líderes das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk à revelia de Kiev. O acordo de cessar-fogo assinado em Minsk em Setembro, cada vez mais letra morta, prevê eleições locais nas áreas fora de controlo ucraniano para 7 de Dezembro.

Para além da prioridade óbvia que é a pacificação do país, o novo governo – que deverá ser apresentado durante os próximos 30 dias – tem ainda uma situação económica calamitosa para enfrentar. O plano de resgate de 21 mil milhões de euros, acordado com os líderes ocidentais, e o crédito concedido pelo FMI de 13 mil milhões já se mostraram insuficientes para reverter a queda acelerada da economia, cujo PIB deve cair entre 8 a 9% até ao fim do ano. A divisa ucraniana, o hrivnia, desvalorizou para metade desde o início do ano e a inflação subiu 17%. E há ainda a mais que necessária reconstrução do Donbass, o coração industrial da Ucrânia, cuja produção é praticamente nula, em virtude de uma guerra que é também um sorvedouro de fundos, calculada em 4,4 milhões de euros por dia.

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