A guerra não vai acabar em Alepo, mas Assad sobreviverá

Rússia garante que rebelião já perdeu metade do território que controlava desde 2012 no Leste da cidade. Idlib, a última província nas mãos dos grupos que combatem o regime de Damasco, poderá ser o alvo seguinte.

Foto
Milhares de pessoas em fuga do Leste de Alepo esperam pelos autocarros que os levarão para as zonas controladas pelo Governo George Ourfalian/AFP

Alepo foi durante quatro anos “um microcosmo” da guerra na Síria, dizia há dias a BBC, sublinhando que a batalha que ali se trava desde 2012 mostrou como nenhuma outra “as fraquezas dos dois lados, bem como o fracasso do mundo para proteger os civis e negociar a paz”. A segunda premissa mantém-se inalterada, mas as últimas duas semanas estilhaçaram o que restava do impasse militar. Com as milícias xiitas na frente da ofensiva e os aviões russos a apoiá-la do ar, as forças que apoiam Bashar al-Assad parecem prestes a apoderar-se de toda a cidade – uma vitória que não põe fim à guerra, mas que significará a sobrevivência do Presidente e do seu regime.

Staffan de Mistura, enviado especial das Nações Unidas e autor de incontáveis tentativas para levar o Governo sírio e a oposição a negociarem uma solução política, disse não saber “quanto tempo vai durar o Leste de Alepo”, mas os avanços do regime “representam claramente uma aceleração de um desfecho militar”.

“Praticamente metade do território ocupado pelos rebeldes nos últimos anos foi libertada”, congratulou-se o general Igor Konashenkov, porta-voz do Ministério da Defesa russo, dizendo que “graças a manobras cuidadosamente preparadas, o Exército sírio conseguiu alterar radicalmente a situação” militar. Repudiando as críticas do Ocidente, a quem acusou de “cegueira” sobre o que se passa no terreno, o general afirmou que os avanços feitos desde sábado permitiram que 80 mil civis que “foram usados como escudos humanos pelos terroristas” tivessem finalmente acesso a água e comida.

Sabe-se que milhares de pessoas fugiram para as áreas tomadas pelas forças governamentais – a agência Sana divulgou nesta terça-feira imagens de uma multidão à espera de autocarros fretados pelo Governo – e que muitas outras procuraram um refúgio incerto no enclave curdo de Sheik Maqsoud. Sobre o que se passa nos bairros do Leste (agora quase só Sudeste) chegam relatos mais confusos, que falam sobretudo de privação e medo. “Vivemos quatro anos sob controlo dos rebeldes e é claro que muitos de nós se envolveram com a oposição. Agora o Exército está muito próximo e é claro que têm informações sobre nós”, disse um residente ao jornal britânico Guardian, um entre os muitos que desesperam com fome e medo das bombas que continuam a cair, mas receiam igualmente atravessar a linha da frente, arriscando-se a represálias.

“Tendo em conta o registo longo e negro do Governo sírio em relação a detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados, é ainda mais crucial proteger os civis das áreas recentemente tomadas”, alertou a Amnistia Internacional, dizendo ter recebido informações, que não conseguiu confirmar, de que homens do bairro de Masaken Hanano, o primeiro a ser tomado, foram levados para interrogatório no aeroporto vizinho.

Depois da rapidez com que caíram as defesas dos rebeldes no Nordeste – uma velocidade que surpreendeu quer a oposição, quer as forças pró-Assad –, a linha da frente parecia nesta terça-feira estabilizada junto à auto-estrada que atravessa a cidade, mas havia já notícias de combates e ataques aéreos em Aziza, na ponta sudeste da cidade, em cujas imediações se concentravam as milícias xiitas que têm tomado a dianteira da ofensiva.

O objectivo, revelou à Reuters um dirigente da aliança militar que apoia Damasco, é tomar o Leste de Alepo até 20 de Janeiro. “Os russos querem completar a operação até Donald Trump assumir a o poder”, mitigando o risco de uma reviravolta quando o Presidente eleito chegar à Casa Branca, disse o responsável, sob anonimato, admitindo que à medida que a ofensiva entrar em zonas mais densamente povoadas os avanços serão mais difíceis.

Tomando Alepo, Assad terá de novo sob controlo as cinco maiores cidades da Síria e o domínio quase ininterrupto do Oeste do país, a região mais habitada e território estratégico para a sobrevivência do Governo. À rebelião restarão bolsas de território em Deraa (Sul), o berço da revolta contra Assad em 2011, e nos arredores de Damasco, além da província de Idlib, controlada pelo Exército da Conquista (aliança de jihadistas e salafistas). Transformada em refúgio dos rebeldes vencidos noutras regiões, a província será o alvo seguinte, se Alepo cair, prevê a empresa de estudos de segurança Stratfor – o Le Monde escreveu que Damasco já prometeu que Idlib “será o túmulo” dos rebeldes.

Com a rebelião espalhada pelo país, os curdos a controlar a fronteira a norte e o Estado Islâmico a ocupar parte do Leste, a guerra na Síria não tem um fim militar à vista. Mas uma vitória em Alepo, cidade “com um extraordinário prestígio histórico, político e geopolítico”, dará a Assad “as chaves para controlar um eventual reinício das negociações de paz”, disse à AFP Mathieu Gudère, especialista francês em geopolítica do Médio Oriente.

Tendo recusado dar aos rebeldes o mesmo apoio que foi dado pela Rússia e o Irão a Damasco, será quase impossível aos países árabes e ocidentais continuar a exigir o afastamento do Presidente sírio como condição para a paz. A queda de Alepo, explicou Abu Abdallah, do Centro de Estudos Estratégicos de Damasco, “marcará o fim das últimas esperanças dos países que apoiaram a rebelião”.

Sugerir correcção
Ler 18 comentários