A guerra das milícias pode continuar para além da paz na Ucrânia

Novo Presidente ucraniano promete negociar o fim dos combates até ao fim da semana, mas a proposta que tem para apresentar é ainda um mistério para todos.

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Membros de uma milícia pró-russa em Slaviansk, de onde já fugiram milhares de pessoas VIKTOR DRACHEV/AFP

Quem ouve apenas os discursos do novo Presidente ucraniano e os relatos da conversa breve e quase a contragosto que manteve com Vladimir Putin nas comemorações do Dia D, na sexta-feira passada, pode ficar com a ideia de que a guerra no Leste da Ucrânia já esteve mais longe do fim.

No domingo, Petro Poroshenko anunciou a intenção de pôr fim aos combates até ao fim desta semana, mas não avançou de que forma irá convencer os rebeldes a pousar as armas – irá propor um cessar-fogo incondicional e retirar as suas tropas do Leste da Ucrânia, como exigem os separatistas, negando tudo o que tem defendido até agora?

Um dia antes, enquanto o novo Presidente da Ucrânia tomava posse, em Kiev, o homem que se apresenta como líder da autoproclamada República Popular de Donetsk, Denis Pushilin, escapava a uma tentativa de assassinato, que acabou por resultar na morte de um dos seus assistentes, Maksim Petruhin.

Todos os dias, cada vez mais habitantes das províncias separatistas de Donetsk e Lugansk, na região do Donbass, tentam esconder-se em caves ou escapar de comboio à violência dos bombardeamentos das forças ucranianas e da violência das várias milícias – tanto as pró-russas como as autorizadas por Kiev para colmatar as fraquezas do seu exército regular.

A guerra no Leste da Ucrânia já ultrapassou o ponto da atribuição de culpas – perde-se na discussão sobre se a responsabilidade principal pelas mais de 200 mortes nos últimos dois meses é da "operação antiterrorista" de Kiev ou da "luta contra o fascismo" dos rebeldes. Para perceber se a promessa do novo Presidente ucraniano de negociar o fim dos combates até ao fim da semana tem alguma probabilidade de êxito, começa até a ser pouco relevante saber se a Rússia ainda envia soldados para o Leste da Ucrânia, ou se está mesmo a fortalecer os controlos na fronteira, para impedir a passagem de voluntários e mercenários de um lado para o outro.

"Eu não quero a guerra, não quero vinganças, apesar de ver com os meus próprios olhos os enormes sacrifícios que o povo ucraniano está a fazer. Procuro a paz, e vou alcançar a unidade da Ucrânia. É por isso que estou a começar as minhas funções com a proposta de um plano de paz", declarou Petro Poroshenko durante a cerimónia de tomada de posse como Presidente da Ucrânia.

Crise humanitária
Quase ao mesmo tempo, os habitantes da cidade de Lugansk ouviam apenas o barulho do fogo de artilharia das tropas ucranianas e dos lança-granadas dos rebeldes separatistas.

O resultado, escreve no site Vice News a jornalista Harriet Salem (que está no Leste da Ucrânia e escreve também para o The Guardian, o Financial Times ou a revista Foreign Policy), é "uma crise humanitária relatada de forma insuficiente".

E a culpa, mais uma vez, tem de ser repartida: "É cada vez mais difícil para os jornalistas trabalharem na cidade de Slaviansk. Tanto as forças pró-russas como os militares ucranianos têm procurado limitar o acesso na região, como parte de uma corrida para ganhar aquilo que é visto como uma guerra de informação", escreve Salem.

Os poucos relatos independentes que chegam do terreno, longe das cerimónias no parlamento ucraniano e dos jogos de maior ou menor cinismo entre Moscovo, Washington e Bruxelas, ficam muitas vezes escondidos atrás das condenações políticas e das declarações de intenção.

"Pensa-se que mais de 15.000 pessoas já fugiram de Slaviansk, uma cidade que tem uma população de pouco menos de 130.000 habitantes. (…) Mas, apesar dos esforços das organizações não-governamentais, a falta de informação e de apoio do Governo [ucraniano] aos que querem sair significa que muitos mais permanecem no interior da cidade – pobres de mais, com medo, ou simplesmente sem vontade de deixar para trás uma vida inteira. Para os que ficaram, a vida diária é uma luta constante e crescente", lê-se na reportagem da jornalista Harriet Salem.

Na mesma semana em que Petro Poroshenko tomou posse, com um discurso ao mesmo tempo firme e conciliatório em relação à Rússia (quer a Crimeia de volta e vai caminhar em direcção à União Europeia, mas acredita que só haverá paz para todos se houver paz com os russos), chegaram também novos relatos alarmantes de organizações de defesa dos direitos humanos, que reforçam a ideia de que o caos no Leste da Ucrânia pode já estar fora do controlo dos líderes políticos, sejam eles da Ucrânia, da Rússia, dos Estados Unidos ou da União Europeia.

"Os sequestros começaram logo no início da rebelião. Estima-se que o número de pessoas detidas ilegalmente seja de 200. Estas detenções ilegais podem durar dias ou semanas, por vezes, mais de um mês", disse à AFP Maria Olinik, representante da organização Provista, em Donetsk.

Em meados de Maio, um relatório das Nações Unidas dava conta de "vários casos de mortes, de tortura, de espancamentos, de sequestros e intimidação protagonizados, na sua maioria, por grupos antigovernamentais".

Há duas semanas, o The New York Times publicou uma reportagem com o título Ucrânia luta para assumir controlo sobre as milícias, incluindo as suas próprias milícias; o mesmo pode dizer-se do lado contrário, depois de ter sido noticiada a chegada do Batalhão Vostok a Donetsk, no fim do mês passado, com o principal objectivo de pôr na ordem as forças separatistas.

Num dos parágrafos da reportagem do jornal norte-americano, centrado numa batalha na aldeia de Karlovka, reside a chave para interpretar as hipóteses de sucesso do "início do diálogo", anunciado pelo Presidente ucraniano, e da prometedora descrição russa de Poroshenko como "um parceiro sério": "Esta batalha revelou o potencial devastador para a violência entre milícias improvisadas, algumas com pouco treino, que poderá continuar mesmo que os confrontos entre o Exército ucraniano e os rebeldes cheguem ao fim."

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