A Europa não pode duvidar dos seus valores

Talvez a mancha mais indelével que se colou à Europa nestes últimos dias tenha sido a forma como reagiu a mais uma tragédia no Mediterrâneo.

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1. A Europa atravessa um daqueles momentos de indefinição em que uma visão estratégica se torna cada vez mais indispensável para garantir-lhe um futuro. Do ponto de vista económico e social, mas também político e de segurança. A crise, em vez de unir, separou. Em vez de levá-la a olhar para o mundo, fechou-a ainda mais sobre si própria. O nacionalismo ganhou terreno e devíamos saber pela própria história europeia onde isso nos pode conduzir.

Continua a reagir, raramente a agir, perante os desafios internacionais, movida por diferentes agendas nacionais, infelizmente determinadas pelo curtíssimo prazo. A crise grega desliza sobre o tempo e a falta de entendimento. Em três meses, Atenas não conseguiu quase nada dos seus parceiros europeus. A última reunião do Eurogrupo, em Riga, pôs fim a uma primeira fase do processo negocial que, segundo os ministros das Finanças da zona euro, serviu apenas para perder tempo. Atenas ficou ainda mais isolada. Na véspera, o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, teve um encontro com a chanceler alemã (à margem da cimeira extraordinária), onde ambos repetiram que é do seu interesse mútuo manter a Grécia no euro. No fim-de-semana seguinte, Tsipras remodelou a equipa de negociadores, de forma a neutralizar o “efeito Varoufakis”, com o seu permanente show-off. Continuará a ir ao Eurogrupo porque é (ainda) o ministro das Finanças, mas a equipa técnica  será agora chefiada pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, um homem alegadamente mais discreto, mais sabedor e menos folclórico. Talvez pense exactamente o mesmo que Varoufakis, mas é um quadro antigo do Syriza, capaz de conduzir um diálogo mais “amigável” com as instituições europeias. Há, no entanto, um factor que o Syriza não pode ignorar: dois terços dos gregos querem que o Governo consiga um acordo, mesmo que o custo seja muito alto. Muita gente continua a acreditar que a chanceler alemã não quer empurrar a Grécia para fora do euro (mesmo que algumas vezes pareça). O argumento é velho. Merkel não quer ficar na História como a chanceler que veio do Leste para destruir a Europa. Mas também é bom lembrar que a Alemanha está, ela própria, numa fase de transformação que se reflecte na sua liderança europeia. O que quer a Alemanha para si própria começa é uma variável que cada vez mais é preciso colocar na equação.

2. Uma coisa, no entanto, parece preocupar mais a chanceler do que Grexit: um eventual Brexit. Digamos que a nova ambição alemã até podia agradecer uma saída do Reino Unido, abrindo as portas a uma Europa mais continental do que atlântica e, certamente, mais alemã. Mas o que interessa a Berlim é o risco de perder um aliado para coisas tão importantes como a liberdade de comércio (incluindo as negociações do TTIP), fundamental para a sua máquina exportadora. David Cameron também gosta da austeridade e do corte de regalias sociais que agradam á chanceler. Por enquanto, a Alemanha ainda pensa assim, mas não sabemos até quando.

Falta apenas uma semana para saber para que lado cai o poder no Reino Unido. Se David Cameron conseguir ganhar (e as sondagens são-lhe favoráveis), os seus parceiros europeus vão ter de conviver com a enorme incerteza de um referendo que deverá ocorrer até 2017. Na semana passada, Jean-Claude Juncker abriu as portas a uma negociação com Londres que permita a devolução de alguns poderes a Westminster, obrigando a uma alteração dos tratados. Mas é uma decisão que pertence aos governos e que vai, com certeza, sofrer uma forte oposição. Como disse Tony Blair recentemente, foi Cameron quem construiu a armadilha da qual não se consegue agora libertar. O primeiro-ministro britânico nunca quis sair da União Europeia, mas achou que podia tirar o génio da garrafa e depois voltar coloca-lo lá. Ed Miliband tem uma visão diferente sobre o destino europeu do seu país. Se ganhar as eleições terá de convencer os britânicos de que o referendo é uma má ideia, o que é sempre muito difícil. Entretanto, a velha aliança entre o Reino Unido e os EUA, que marcou profundamente a política externa britânica desde a guerra, parece já não entusiasmar os conservadores. Washington e o Pentágono querem o Reino Unido dentro da União Europeia e querem que mantenha a sua capacidade militar. Têm tido várias desilusões. Obama olha cada vez mais para Berlim e para Paris para resolver problemas tão sérios como a Rússia, o Iraque ou a Síria. Os eurocépticos já não são contra a Europa e a favor dos EUA. São pelo isolacionismo.

3. Mas talvez a mancha mais indelével que se colou à Europa nestes últimos dias tenha sido a forma como reagiu a mais uma tragédia no Mediterrâneo, daquelas em que o número de vítimas é tão grande que ninguém consegue olhar para o outro lado. Houve um Conselho Europeu de emergência. Frases compungidas. Promessas vagas para que tudo ficasse mais ou menos na mesma. Não se trata de realismo, porque o realismo tem um limite, pelo menos nas democracias liberais. A Europa não pode ser indiferente ao drama de milhares de refugiados e de imigrantes que já não têm nada a perder e que arriscam tudo para chegar ao lado de cá do Mediterrâneo. Antes de ser um problema político, é um problema moral. É um problema de humanidade. A imigração e o asilo continuam a fazer parte da natureza europeia (como fazem nos Estados Unidos). A abertura ao mundo é, aliás, uma das vantagens maiores de que dispõem as democracias ocidentais em relação a outras grandes potências como a China, a Rússia ou o Japão, fechadas aos outros. A Europa precisa de imigrantes e tem de ser capaz de os integrar, sob pena de passar ao estado de museu. Ninguém diz que se trata de um problema fácil, sobretudo nesta fase de crise europeia aguda. Os partidos xenófobos descobriram um maná para atrair eleitores, criando um grande desconforto nos partidos europeus. Mas, mais uma vez, uma solução humana e equilibrada teria de ser encontrada a nível europeu, de forma a enfrentar uma realidade que não vai desaparecer, antes tenderá a agravar-se.

4. Há, aliás, outro lugar onde se joga hoje a natureza da Europa: Budapeste. A Hungria foi um dos primeiros 10 países da Europa de Leste a aderir à União, em 2004. Hoje, Victor Órban, primeiro-ministro há cinco anos, levou o seu país para muito longe da Europa em matéria de direitos e liberdades fundamentais, alegando que a democracia liberal está esgotada, e que este é o tempo da “democracia iliberal” mais à maneira de Putin. Já mudou a Constituição para concentrar outros poderes nas suas mãos (como os tribunais) e para calar a comunicação social. Passou a linha vermelha (esperamos nós) quando anunciou que era a favor da pena de morte, em competição com o partido de extrema-direita (ainda mais à direita), que lhe está a roubar votos. É difícil encontrar uma penalização efectiva para Budapeste. Mas se as novas regras de Bruxelas dizem que um país que não cumpra as metas do défice ou da dívida pode ver os fundos europeus a que tem direito suspensos, por maioria de razões quem não cumpra os valores fundamentais da União Europeia pode ser penalizado da mesma maneira. Ficar tudo na mesma é que começa a parecer impossível.

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