A Europa entre o século XIX e o século XXI

Como Obama explicou a Putin, a Rússia pagará caro pelo seu regresso ao século XIX e às relações entre países ditadas pela força bruta.

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1. Nem o Presidente Obama nem o seu homólogo chinês, Xi Jinping, alguma vez pensaram que as suas visitas à Europa, coincidindo com a conferência sobre a segurança nuclear, decorreriam naquela que é a maior crise de segurança europeia desde a queda do Muro de Berlim.

O Presidente americano vinha dizer aos aliados europeus que continuava empenhado nas relações transatlânticas e na sua maior e mais recente decisão estratégica – a negociação da Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento, cujo objectivo é reconquistar o poder económico das democracias ocidentais num mundo em que a riqueza se desvia para leste. De caminho, era sua intenção tranquilizar os europeus em relação à NSA, reduzindo drasticamente o seu alcance dentro e fora dos EUA. Xi Jinping, na sua primeira visita à Europa, trazia na mala um gesto de boa vontade para melhorar a cooperação económica e para assinar alguns negócios milionários. Foi recebido de passadeira vermelha em Paris e em Berlim. Curiosamente, os dois presidentes tinham agendado visitas às instituições europeias em Bruxelas, que Obama nunca tinha incluído nos seus itinerários europeus. Nunca compreendeu bem (aliás, como os chineses) as complicações formais da União Europeia ou as cimeiras EUA-UE de agenda quase vazia. Preferiu relacionar-se directamente com Merkel (por causa da crise) ou com Hollande (por causa da segurança). A sua visão política resumia-se à ideia de que a Europa teria de fazer muito mais pela estabilidade regional, deixando os EUA mais livres para tratar de outras questões estratégicas, centradas na Ásia-Pacífico. O seu “pivô” para a Ásia (que continua certo) assentava na ideia de que a ordem internacional do seculo XXI dependerá em grande medida da relação de cooperação que os EUA conseguirem estabelecer com a China.

2. O guião da visita do Presidente americano viu-se alterado de cima abaixo, graças a Vladimir Putin. A agressão russa à Ucrânia e a anexação da Crimeia transformaram-se subitamente numa crise de enormes proporções, que (já toda a gente percebeu) veio alterar radicalmente a ordem europeia e internacional. Com uma consequência fundamental: a velha aliança transatlântica regressou ao topo da agenda americana e europeia para fazer frente às ambições bélicas e antiocidentais do Moscovo. A União Europeia, com as suas divisões e as suas enormes fraquezas, descobriu um sentido de unidade que só uma crise muito grave permitiria. Graças a Merkel, a coordenação transatlântica para fazer parar o Presidente russo funcionou até agora na perfeição. Seja o que for que aconteça daqui para a frente é muito pouco provável que as coisas voltem ao business as usual do pós-Guerra Fria. Depois da Bósnia, depois do Afeganistão, a NATO precisava de um propósito para continuar a ser relevante. Já o tem. E não por culpa própria. Passou as duas últimas décadas a oferecer uma parceria à Rússia. No tempo de Clinton, assinou com ela o Conselho NATO-Rússia (1997). Mais recentemente, Obama ofereceu-lhe um “reset” que incluía a sua participação no sistema de defesa antimíssil da NATO. O alargamento da Aliança à Ucrânia e à Geórgia foi travado já no final da era Bush para dissipar a noção de cerco. Teria sido mais fácil a Putin seguir este caminho para garantir à Rússia o estatuto de grande potência do que aquele que acabou por escolher, de resultados pouco fiáveis. Cometeu um erro de cálculo: não conseguiu dividir o adversário, antes pelo contrário. A Economist escreve que “Putin está a fazer o papel de Cupido entre a América que é de Marte e a Europa que é de Vénus”. A crise provou, acrescenta a revista, que “se a América é ainda a potência indispensável, a Europa também é muitas vezes o seu parceiro indispensável”.

Tudo isto acabará por ter implicações profundas na agenda transatlântica. Aumenta a urgência da parceria comercial. Bruxelas e Washington vão reunir-se já no início de Abril para estudar as formas de reduzir a dependência energética europeia. O apoio à Ucrânia, político e económico, terá de ser muito mais forte, inteligente e devidamente coordenado. Mas houve algumas coisas que Obama disse em Haia e em Bruxelas que definem esta nova realidade e que mostram que ela terá um custo para os europeus.

3. Em primeiro lugar, não vale a pena aos europeus pensar que a política externa americana vai deixar de estar focada na Ásia. Esta é uma opção estratégica de longo prazo que faz, aliás, todo o sentido. É na Ásia que está o maior desafio estratégico da América e do Ocidente: integrar a superpotência emergente numa ordem internacional de tal forma que a sua ascensão se faça pacificamente. Esta é, de resto, uma tarefa que, como um dia disse Kissinger, deverá ser encarada como um objectivo transatlântico e não apenas americano. Sendo uma zona de potencial tensão da China com os seus vizinhos mais ou menos poderosos, o papel dos EUA como potência asiática será cada vez mais indispensável para garantir a estabilidade e a paz. A diferença está em que Obama entendeu que, por enquanto, os Estados Unidos também continuam a ser uma potência europeia. Se prestámos a devida atenção aos seus discursos na Europa (em Haia e em Bruxelas), por duas vezes pelo menos o Presidente invocou o Artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, segundo o qual o ataque a um membro da Aliança (mesmo agora, com 28 membros) é um ataque a todos. Obama fê-lo para tranquilizar os países que têm fronteiras com a Rússia ou uma minoria russa significativa: sobretudo os bálticos e a Polónia. A NATO e os EUA reforçaram, mesmo que simbolicamente, a sua presença militar nesses países. Mas houve outra parte das suas intervenções que os europeus também precisam de ouvir. Para que a Aliança seja revigorada e eficaz não pode continuar a depender apenas do poderio militar americano – ou seja, a segurança tem um custo, que os europeus se desabituaram de pagar, reduzindo sistematicamente os seus orçamentos da defesa e, agora, ainda mais por causa da crise. Esta é a lição que a Europa tem de tirar desta súbita ameaça russa da qual não estava à espera. Será uma lição muito difícil, mas não impossível, desde que os europeus também percebam que uma maior integração dos seus dispositivos de defesa pode permitir fazer mais com menos dinheiro. Obama deixou dois recados. A Berlim, que terá de assumir maiores responsabilidade de liderança não apenas económica mas também política. A fase de votar com os emergentes já passou. A Londres, que esta é a pior altura para os britânicos andarem a brincar com a saída da União Europeia.

Como Obama explicou a Putin, a Rússia pagará caro pelo seu regresso ao século XIX e às relações entre países ditadas pela força bruta. E é aqui que entra Xi Jinping. O Presidente chinês veio à Europa demonstrar a importância que a China lhe atribui, apesar de alguns diferendos na OMC, e para fechar alguns negócios. A China precisa do investimento europeu e dos seus mercados. Está a investir na Europa, tirando partido da crise de alguns países e da sua necessidade de obter investimento (Portugal é um exemplo). Quer internacionalizar a sua moeda. E deseja uma relação forte com a Europa que permita contrabalançar a sua relação de enorme interdependência com os Estados Unidos. O Presidente vai manter a sua neutralidade um tanto ou quanto ambígua em relação à Crimeia, que estará também na agenda dos seus encontros. Enquanto a Rússia tem uma economia e uma demografia que lhe impedem um grande futuro, a China tem uma demografia e uma economia que lhe garante o futuro. Vai ser uma potência do século XXI. A Rússia quer ser uma potência do século XIX.

Falta saber o que é que a Europa quer ser num mundo que não se reduz à economia e se está preparada para pagar o preço. Como diz Joschka Fischer, antigo chefe da diplomacia alemã, a forma como a Europa for capaz de lidar com esta crise da Ucrânia, que altera profundamente a sua relação com a Rússia, “pode determinar se será capaz de ser, também ela, uma potência do século XXI”.

Jornalista
 

   

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