A Europa em transe constitucional

Como observador próximo da vida de Bruxelas, creio que a União Europeia voltou a entrar num momento de alteração, de verdadeiro transe constitucional.

1. Não é preciso ser leitor medianamente atento das páginas do PÚBLICO para perceber que, as mais das vezes, estou nos antípodas da compreensão ou da “pré-compreensão” da crise europeia, da crise política e da crise económico-financeira apresentada por Pacheco Pereira.

Leio-o sempre, todavia, com atenção e, reconheço-o, com enorme proveito. Não perfilhando, nem de longe nem de perto, da sua visão global, a verdade é que há muitas chamadas de atenção, muitas observações e muitas explicações que, ainda que fora daquele quadro global, são certeiras, interpelam e merecem reflexão. É evidente que não julgo possível o regresso ao mundo das soberanias territoriais – que, de resto, nunca existiu. É evidente que, pelo simples avanço tecnológico, a que Pacheco Pereira está tão apegado e que tão originalmente divulga no “ponto-contraponto”, as tradicionais formas de exercício da democracia estão ameaçadas (e não é propriamente por nenhum monstro burocrático de Bruxelas). É também ostensivo que há alternativas ao status quo – ao tal status paralisante do directório e da condução unipolar da Alemanha. Mas é identicamente manifesto que uma das alternativas para o reforço da democracia em dimensões territoriais mais vastas ou mesmo em dimensões pós-territoriais pode sempre ser a solução federal. E que esta talvez tivesse mais aptidão para libertar as identidades nacionais de opressão ou de supostas agressões e chantagens do que um romântico regresso aos soberanismos parlamentaristas do século XIX e XX (que nunca deixaram de, cada um à sua moda e da sua vez, estar sujeitos à tutela das potências hegemónicas). É aqui, na ideia de que há uma eurocracia, de ideologia única, presuntivamente liberal ou neo-liberal, trituradora dos parlamentos nacionais e das suas prerrogativas, ameaçadora das identidades nacionais e da noção de independência estatal, que reside a minha radical divergência. É esta noção simples de que todo o mal vem da Europa, que o empobrecimento e a indiferença social nascem de uma perfídia europeia ou de um neocolonialismo de sinal luterano que, sem dúvida, me parece totalmente desadequada. E que, paradoxalmente, pelo vigor e exagero caricatural com que se defendem, parecem desvalorizar e retirar o foco de algumas críticas duras e pertinentes que, essas sim, mereceriam consideração, reparo e conserto.

2. Não vou hoje dedicar-me a identificá-las, até, porque, de tempos a tempos, quem tiver visto aqui o que fui dizendo, ao longo destes 4 anos sobre o processo grego, sobre o fenómeno das migrações, sobre a disseminação do radicalismo político e até religioso, sobre os processos de secessão no Ocidente europeu (designadamente, espanhol e britânico), sobre a crítica ao Tratado de Lisboa e ao favorecimento de uma solução política “aristocrática” de Estados de primeira e de Estados de segunda, logo perceberá quais são ou podem ser os pontos de contacto. Talvez tenha dado menos atenção à questão social – que é fundamental e fundacional na argumentação de Pacheco Pereira –, mas também aí uma leitura mais cuidada do que tenho escrito sobre a profecia do exemplo do Papa Francisco poderia justificar algumas margens de concessão. Já para não falar da crítica constante à partidocracia, à defesa da legitimidade das decisões do Tribunal Constitucional (mesmo quando, substantiva e juridicamente, delas discordei). O ponto que hoje verdadeiramente me interessa é unicamente e apenas a conclusão do seu artigo de sábado, artigo de que, em múltiplos aspectos me distancio, desde a consistência dos factos e das interpretações à ideia de que os “defensores” e, pior ainda, os “próceres” da realidade falam todos da mesma realidade e acreditam mesmo todos que não subsistem quaisquer linhas alternativas às suas.

3. Interessa-me, como disse, a conclusão do artigo que muito habilmente encosta uma pretensa “direita radical” a uma redução do pensamento de Fukuyama sobre o “fim da história”. Nessa conclusão, e na esteira do eppur se muove de Galileu de que Pacheco tanto gosta, o historiador adverte para que o processo europeu está em fase de mudança, de mudança que pode ser rápida e surpreendente e para que, muito provavelmente, a experiência grega do último semestre foi o seu catalisador. E aí, por mais divergências – e são fundas e cavadas e, às vezes, cortantes – que tenha dos pressupostos de que arranca Pacheco Pereira, não posso deixar de lhe dar razão. Como observador próximo da vida de Bruxelas, como conhecedor razoável da vida política da grande maioria dos Estados da União, como convivente semanal de alguns dos protagonistas, creio que a União Europeia voltou a entrar num momento de alteração, de verdadeiro transe constitucional. Pode ser uma transição mais suave e pactuada, uma mudança da constituição informal que já rege a União (quer os anti-europeístas queiram, quer não). Mas também pode ser uma alteração mais fracturante, não necessariamente de tipo revolucionário, todavia seguramente com traumas e feridas que não vão ser fáceis de sarar. Quem julga que o acordo grego, criou um período de acalmia ou foi o fim de um processo, está – nisso acompanho o pensamento do biógrafo de Cunhal – redondamente enganado. Até o “Grexit” de Schäuble, por mais que nos possa arrepiar e ao contrário do que muitos pensam, não é defendido em nome de uma hegemonia alemã, mas da criação de uma futura estrutura federal coesa (Schäuble foi durante muitos anos o único federalista autêntico do executivo de Merkel – chanceler incluída). Com Putin à espreita, com centenas de milhares de sírios prontos a entrar, com o Reino Unido a querer sair, com a Grécia em convulsão, com a Espanha em incerteza, com a extrema-direita (essa sim radical) em alta em toda Europa Setentrional entramos em período extraordinário de transição constitucional. A Europa vai bulir. E nisso Pacheco tem razão.

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