A diplomacia venceu para abrir ao mundo um Irão sem armas nucleares

Dois anos de persistência negocial das principais potências mundiais e o regime de Teerão produziram um acordo histórico. Segue-se a difícil fase de execução de tudo o que ficou no papel.

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O aperto de mão entre o norte-americano John Kerry e o iraniano Mohammad Javad Zarif AFP

Não é todos os dias que dois inimigos históricos, que vivem de costas voltadas há mais de 30 anos, apertam a mão no fim de um processo negocial que ambos reputam como “equilibrado e justo” e em que “ambas as partes ganham”. Talvez por isso, nenhum jornal do mundo, da América à Europa ao Médio Oriente, tenha hesitado em titular como “histórico” o acordo para a limitação e supervisão das actividades nucleares do Irão, que foi assinado em Viena de Áustria depois de dois anos de complexas conversações internacionais.

Conscientes do seu papel na História, os dois principais líderes envolvidos nas negociações destacaram a “oportunidade real para a mudança numa nova direcção no Médio Oriente”, como o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ou o “início de um novo capítulo” para a vida do país, como o seu homólogo iraniano, Hassan Rohani. Para a representante para Política Externa da União Europeia, Federica Mogherini, deu-se “um sinal de esperança para o mundo inteiro”; o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, referiu-se ao compromisso como “um contributo vital para a paz e estabilidade no Médio Oriente e além”.

O compromisso alcançado pelo chamado grupo 5+1 (EUA, Reino Unido, França, Rússia, China + Alemanha) permite levantar o véu sobre o controverso programa atómico iraniano, que se desenrolava no mais completo secretismo há mais de uma década: ao longo desses anos, o regime foi alegando que as suas actividades tinham fins pacíficos de produção de energia e investigação médica e científica, e as potências ocidentais foram contra-argumentando que o desenvolvimento dessa tecnologia permitiria a construção de uma bomba atómica.

O documento, que tem mais de 100 páginas (incluindo quatro anexos técnicos) estabelece um sistema de verificação internacional do programa atómico e da actividade das unidades nucleares iranianas, a cargo da Agência Internacional da Energia Atómica – que fica em condições de “avaliar as possíveis dimensões militares do programa iraniano até ao fim de 2015”, confirmou o seu director Yukiya Amano. “Todos os caminhos possíveis para a construção de uma bomba nuclear ficaram cortados”, salientou Barack Obama.

Em contrapartida, os aliados internacionais aceitam remover, gradualmente, as sanções que foram impostas ao Irão, e que levaram por exemplo à redução para metade das exportações de petróleo (nos mercados, o preço do crude caiu mais de 2% assim que o acordo foi anunciado). Numa comunicação formal ao país, Hassan Rohani falou no fim de uma “crise desnecessária”, que trouxe sérios prejuízos e dificuldades à vida quotidiana dos iranianos – referindo-se aos anos de contracção económica por efeito das sanções.

Ambos os lados fizeram concessões importantes para ultrapassar o impasse: o Irão sacrificou 98% das suas reservas de urânio enriquecido e paralisou dois terços das suas centrifugadoras por um prazo de dez anos; os aliados aceitaram que a república islâmica tem direito ao uso de tecnologia nuclear e cederam no prazo das restrições, que estarão em vigor por apenas dez anos.

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, congratulou-se com o facto de se ter encontrado uma solução assente na “fundação sólida da lei internacional” e “baseada nos princípios do faseamento e da mutualidade que [o nosso país] consistentemente defendeu em cada etapa destas complicadas negociações”. A Rússia, que apesar do regime de sanções se manteve como um dos poucos parceiros do Irão, anunciou um “novo ímpeto na relação bilateral, que deixará de ser influenciada por factores externos”, e garantiu que “usará todo o seu poder para assegurar o cumprimento do acordo”.

Explicando o alcance do acordo e as suas consequências práticas, o responsável pelos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Phillip Hammond, disse que “sem a ameaça de uma arma nuclear, o Ocidente poderá recuperar os contactos [políticos] com o Irão, e sem um regime de sanções, as empresas poderão restabelecer laços comerciais e voltar a investir no Irão”. “Isto abre uma nova perspectiva de um Irão mais cooperante, mais transparente, de um parceiro mais consistente no Golfo [Pérsico] e que possa dividir com os restantes países a responsabilidade de combater o Estado Islâmico e a sua ideologia extremista”, considerou. À BBC, o seu homólogo iraniano, Mohammad Javad Zarif, concordou que a ameaça jihadista “não é um problema exclusivo da Síria ou do Iraque, é uma realidade global. Agora que levantámos a cortina da ‘irano-fobia’ podemos cooperar para lidar com esse problema”.

Lembram-se do "Yes we can"? 

Na recta final do mandato, e perante o domínio da oposição republicana no Congresso, o Presidente Barack Obama volta a redefinir a política norte-americana face a um segundo inimigo herdado dos tempos da Guerra Fria, e um dos párias identificados como membro do chamado “eixo do mal” (além do Irão, os EUA iniciaram um processo de normalização das relações diplomáticas com Cuba, ao fim de mais de 50 anos de isolamento).

Mais uma vez, o processo resultou da constatação de que a situação vigente não servia os interesses dos EUA, dos seus aliados e do seu inimigo declarado. “Em dois anos de negociações, os Estados Unidos e a comunidade internacional alcançaram aquilo que três décadas de pressão e animosidade não conseguiram: um compromisso abrangente e de longo prazo, que garante que o Irão não conseguirá obter uma bomba nuclear”, frisou o líder norte-americano.

Na sua curta declaração ao país, terça-feira de manhã, Obama reconheceu que “as diferenças [entre os dois países] permanecem bem reais” e que “a difícil história entre as duas nações não pode ser ignorada”. “Mas as coisas podem mudar”, acrescentou o Presidente que chegou à Casa Branca na base dessa premissa. E que adivinhando as manobras da oposição, fez saber que qualquer tentativa para impedir a implementação do acordo alcançado em Viena conhecerá o seu veto. “Seria uma irresponsabilidade deitar tudo a perder”, considerou.

Numa primeira reacção ao anúncio do acordo, o congressista republicano John Boehner, Speaker do Congresso, manifestou o cepticismo da sua bancada com o resultado da negociação com o Irão, que na sua opinião conseguiu obter “milhões de dólares com o alívio das sanções” sem ter de abrir mão das suas ambições nucleares. “Vamos ver exactamente o que diz o acordo em detalhe, e se de facto for tão mau quanto nos parece ser, vamos fazer tudo o que pudermos para acabar com ele”, prometeu.

Quem também prometeu tomar medidas para foi o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que ontem mesmo reuniu o seu gabinete de crise. Sem fugir ao refrão do dia, também Bibi reputou o acordo como histórico: “Um monumental erro histórico” que tornará o Irão uma força regional ainda mais poderosa e ameaçadora para a segurança do Estado judaico. “Recordo que há quatro dias, o Presidente Hassan Rohani participou num comício com gritos de ‘Morte à América’ e “Morte a Israel’. Há quatro dias”, reforçou.

Várias instituições e observadores independentes destacaram os desafios que se levantam agora para a fase crucial de “execução” do acordo, chamando a atenção para o elevado risco de incumprimento. Segundo o International Crisis Group, “ultrapassar décadas de animosidade, entre o Irão e o Ocidente e dentro da região, será seguramente muito mais difícil do que foi fechar o acordo de Viena. Mas se os últimos dois anos de conversações nos ensinaram alguma coisa, foi que os diferendos mais insanáveis podem ser a resolvidos através da diplomacia persistente e paciente”.

 

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