A dimensão geopolítica da crise grega e não só

À medida que a sua economia encolhe, cresce a importância estratégica da Grécia. Teme-se o “caos”. Nesse caso, “o flirt grego com Moscovo poderia tornar-se numa coisa séria”, diz Sebastian Mallaby

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E se acontecer o “Grexit”? Se a Grécia acabar por sair do euro ou até da UE? A discussão tem estado focada nos aspectos financeiros, na dívida, na austeridade ou na compaixão pelo povo grego. A dimensão geopolítica da crise tem sido desvalorizada. Se a Grécia representa 2% do PIB europeu, é membro da NATO e constitui uma das mais críticas fronteiras da Europa. À medida que a economia encolhe, a sua importância estratégica tende a subir.

“A emergência é sobre muito mais do que dinheiro, é sobre a segurança europeia, especialmente nos Balcãs”, escreve Tony Barber, do Financial Times. O americano Marc Chandler, analista de riscos e mercados, previne que numa prova de força com a Rússia, “as vantagens estratégicas representadas pela Grécia são insubstituíveis”. Abusa-se da linguagem económica, a nova e “errada língua franca”. E conclui: “Muito mais do que a economia o que está em causa é a geopolítica. O custo deste disparate pode ser incalculável.”

O risco geopolítico é uma das razões de Merkel para tentar manter Atenas na zona euro. Mas isso não passa para a opinião pública europeia.

O factor russo
No encontro de 23 de Março com Tsipras, Putin teve o prazer de mostrar que não estava tão isolado como isso. Por sua vez, Tsipras tentou mostrar que Atenas poderia ter outros parceiros. É patente que a Rússia não tem meios financeiros para substituir a UE. Mas Moscovo identificou a Grécia como um dos elos fracos da UE e da NATO, que tenta dividir. Se Moscovo não salva Atenas, a diplomacia grega pode ser-lhe preciosa.

O ministro da Defesa grego, Panos Kammenos, um filo-russo de extrema-direita, ameaçou “inundar a Europa com imigrantes clandestinos e jihadistas”. O empolamento das ameaças é frequentemente uma arma ou um meio de pressão negocial. Mas a ameaça revela que os gregos têm uma aguda consciência da importância do seu papel geopolítico.

Os analistas não pensam numa viragem radical das alianças. A Grécia deverá permanecer na UE e na NATO. O problema é outro. “O espectro do ‘Grexit’ assinala o declínio da influência da UE na Europa e talvez de um simultâneo aumento da influência russa”, diz Luis Simón, do Instituto de Estudos Europeus de Bruxelas. Teria um grande peso simbólico, mostrando que a pertença de um país à moeda única não é irreversível, dando a ideia de uma lenta desagregação da zona euro.

“O afastamento da Grécia constituiria uma confissão de fracasso para Europa”, escreve o grego George Prevelakis, professor de Geopolítica e representante de Atenas na OCDE. “[Seria] um grave golpe no seu soft power, um enfraquecimento da iconografia europeia, indispensáveis perante a situação económica.”

“Buraco negro”
Os Balcãs ocidentais não estão ainda estabilizados. Sobe a tensão na Macedónia, que poderá entrar em colapso. Os EUA perdem influência no Médio Oriente. A Turquia parece afastar-se do Ocidente. A Rússia e a China desenvolvem as suas redes e a sua influência em Chipre e na Grécia. Está em curso uma vaga migratória, alimentada pela guerra síria e outras catástrofes, perante a qual a Grécia é a mais sensível fronteira europeia. Para não falar no jihadismo. Ou no risco de novo confronto entre gregos e turcos, agora em torno das reservas de gás no mar Egeu.

“A verdadeira ameaça do ‘Grexit’ não está nos mercados mas na geopolítica”, repete o americano Sebastian Mallaby, do Council on Foreign Relations. “Na verdade, uma Grécia fora da zona euro arrisca-se a tornar-se num ‘Estado falhado’— uma perspectiva indesejável para os gregos mas também para os Estados Unidos e aliados.” A ideia de que Atenas seria capaz de lançar uma nova moeda credível é uma fantasia. Teme-se o “caos”. Neste caso, prossegue Mallaby, “o flirt grego com Moscovo poderia tornar-se numa coisa séria”.

“O principal risco geopolítico de uma ruptura com a UE seria a transformação da Grécia num foco de instabilidade, de descontentamento popular alimentado por um forte rancor e pela xenofobia em relação ao Ocidente”, resume o historiador grego Nicolas Bloudanis.

“Uma Grécia recuperada, dentro da zona euro, seria capaz de desempenhar um papel positivo na cena cada vez mais caótica do Mediterrâneo Oriental”, escreve o analista alemão Ian Lesser. Uma Grécia caótica faria a UE perder um importante trunfo para a projecção do poder europeu e a NATO perderia um parceiro chave perante os actuais riscos derivados da pressão migratória, do terrorismo e das questões energéticas. Conclui: “A saída da Grécia do euro, ou um eventual default suscitam reais problemas geopolíticos.”

Os europeus devem ter consciência que, mesmo no caso de “Grexit”, vão ter de continuar a financiar a Grécia por razões de segurança. “Deixar a Grécia transformar-se num ‘buraco negro’ da Europa de Sueste não é uma opção”, previne Tony Barber.

“As derrotas heróicas”
A dimensão geopolítica da crise grega é um quebra-cabeças para a UE. Como equilibrar os imperativos estratégicos com as regras da zona euro? A resposta não será encontrada enquanto se analisar a crise grega apenas em termos económicos e morais. As emergências financeiras encobrem o “pecado original”: um Estado que “só funciona intermitentemente” e que os gregos nunca reformam.

Hoje, estamos perante um segundo problema escondido: o do Syriza, cuja racionalidade nos escapa. Introduzo uma nova dimensão que parece estranha ao nosso tema, mas que, de facto, não é. E volto a citar Prevelakis, numa recente entrevista ao Libération.

“O desastre económico e a política de ruptura não põem termo à influência política da esquerda radical. (...) Saída da área comunista, a esquerda radical retomaria assim a sua história das ‘derrotas heróicas’, na expressão [do cineasta] Theo Angelopoulos. Depois de ter sido derrotado na guerra civil (1944-49), o comunismo grego atravessou o calvário dos regimes autoritários e da ditadura. Ao longo de cinco décadas, a sua vitimização assegurou-lhe uma verdadeira hegemonia na vida cultural e artística (...) e uma verdadeira força de intimidação na vida política.

“A esquerda radical encontra-se perante uma escolha clara. É-lhe necessário sacrificar a sua influência, tão duramente conquistada, no altar de um compromisso com os credores? Se este compromisso se arrisca a fazê-la desaparecer da paisagem política, a ruptura permitir-lhe-ia, mesmo na oposição, preservar o ‘capital imaterial’ da esquerda. (...) Mais do que uma escolha partidária e cínica, a ruptura com a Europa exprimiria, assim, para o Syriza a recusa de trair os mortos em nome do bem-estar dos vivos.

“Numa Europa habituada ao racionalismo económico, estas atitudes podem parecer irracionais. Isto lembra-nos, contudo, que a vida política não é unicamente feita de números e cálculos, mas igualmente de história e cultura.”

A geopolítica não explica tudo. E precisa de compreender grego.   

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