A cultura e a incerteza europeia

A Europa conhece a força mobilizadora desse capital, a cultura, mas não o usa em seu favor.

A Europa está cansada e sem respostas. A ineficácia do seu modelo governativo tem agravado tensões e incertezas. Muitos milhares de refugiados de diversas origens continuam a procurar na Grécia ou em Itália a entrada num continente que, supostamente, lhes pode assegurar pão, tecto e direitos sociais, embora os países em geral dispensem este reforço demográfico.

A crise recente que se encontra longe de estar superada continua a não dar garantias de estabilidade e de um futuro tranquilo. A Europa, pela força do elemento económico e financeiro e pela fragilidade da componente política, continua germanizada quando a vontade da maioria aponta para a necessidade de vermos esse país europeizado e não o contrário, ainda com as feridas abertas por duas guerras mundiais que a Alemanha perdeu mas que deixaram muitas dívidas materiais e morais latentes. E ninguém pode esperar que seja a cultura, com a complexa diversidade que tem neste continente, a apaziguar conflitos e atenuar ódios enraizados e antigos.

Em entrevista recente ao jornal Guardian, o filósofo alemão Jürgen Habermas, professor da Universidade Goethe em Frankfurt, declarou: “A presente crise pode ser explicada com as causas económicas e com o fracasso financeiro.”. E acrescentou: “Nenhuma comunidade política é capaz de suportar esta tensão durante tanto tempo. Ao mesmo tempo, focando e evitando um conflito aberto, as instituições europeias têm evitado tomar iniciativas. Apenas os dirigentes de governos com assento na Comissão Europeia estão em posição de actuar, mas são precisamente os que se mostram incapazes de agir na defesa do interesse de uma comunidade europeia unida, porque pensam demasiado nos seus eleitorados nacionais. E nós estamos presos nesta armadilha.”

Com ou sem Alexis Tsipras na liderança do governo grego, a Grécia deixou de ser a causa central desta crise e passou a ser uma das suas mais amargas consequências, sem que ninguém saiba quais serão as etapas seguintes.

O anúncio vindo de François Hollande de que pretende estabilizar a Europa e a gestão dos seus assuntos com um directório político que envolva e comprometa as nações fundadoras do projecto da União, introduziu, mesmo com o inevitável aval alemão, um novo e forte factor de perturbação e incerteza que ninguém sabe como irá ser superado.

E tem razão de sobra Jürgen Habermas para afirmar que “o projecto de união deve ter capacidade bastante para funcionar ao nível supranacional. Tendo em vista o caótico processo agravado pela crise grega não podemos continuar a ignorar os limites efectivos do presente método de compromisso intergovernamental”.

Entretanto, os muros aparecem e multiplicam-se. Depois da queda do Muro de Berlim em 1989 e do crescimento dos muros de outras vergonhas que separam israelitas de palestinianos, temos um novo muro na fronteira Hungria com a Sérvia, temos o muro que separa a cidade de Ceuta do resto do território marroquino e temos também a promessa de um novo muro em Calais. O mundo cresceu, evoluiu muito em termos tecnológicos mas o ser humano não se transformou e não superou os fantasmas e as ambições que fizeram dele o beco sem saída das grandes angústias milenares que nunca as religiões e as utopias conseguiram superar.

Vasco Graça Moura, grande poeta e político que integrou como deputado o Parlamento Europeu, escreveu o livro “A Identidade Cultural Europeia” (Fundação Francisco Manuel dos Santos), um dos seus derradeiros títulos, em que afirma com sábia serenidade: “Torna-se delicado falar em integração cultural. As questões ligadas à identidade cultural não podem resolver-se nem regulamentar-se como as relativas à produção de manteiga ou à exploração dos recursos do mar. Supõem aproximações e distâncias, possibilidades de coordenação e parentescos, similitudes de estruturação política (hoje em dia) e também uma certa visão do mundo que acaba por ser comum a partir de ópticas que não coincidem necessariamente em todos os pontos. E tem de se respeitar e preservar essas diferenças, prevendo antes modalidades e mecanismos de cooperação”.

As diferenças culturais e a impressionante riqueza da diversidade não tiveram qualquer peso nas duas guerras mundiais do século XX, não desmantelaram trincheiras, não afundaram esquadras, nem declararam vencedores. Nos dois lados das guerras estiveram sempre alguns dos melhores poetas, pintores e músicos das suas gerações, incapazes de comunicarem uns com os outros. Mas foram eles e as suas obras que permitiram ao realizador alemão Wim Wenders afirmar há meses, num canal de televisão em França, que a cultura é o único verdadeiro capital que a Europa deve aproveitar e desenvolver. A Europa conhece a força mobilizadora desse capital mas não o usa em seu favor, nem faz com que ele tenha uma expressão vital na vida da Comissão que tão cara sai a esta Europa.

Agora trata-se de evitar que a incerteza e a desigualdade abram as portas para níveis de crispação, tensão e crítica que já abriram portas a conflitos graves e prolongados. E que fique claro que não há maniqueísmo que permita dizer que os do Norte são bons e os do Sul os incontornáveis culpados. Se formos por aí vamos muito mal e tudo pode terminar da pior maneira sem que o esperemos ou possamos racionalmente prever.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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