A crítica da política externa americana

Pense-se no que poderá acontecer com um outro George W. Bush que possa aparecer nos próximos anos.

Julgo que fui o primeiro português (de um grupo de cerca de uma dúzia, de várias instituições universitárias) a chegar ao 23.º Congresso Mundial da International Political Science Association, IPSA, que decorreu de 19 a 24 de Julho passado em Montreal, Canadá, onde apresentei um ensaio intitulado European Union and Global Governance.

Talvez porque os 15 anos passados em Bruxelas me reforçaram o hábito de chegar a horas aos eventos em que participo, pude assistir à conferência de abertura de Michael Dukakis, representante do Partido Democrático americano na eleição presidencial de 1988. Oriundo da emigração grega e considerado o seu mais ilustre representante nos Estados Unidos, concorreu com o vice-presidente de Ronald Reagan então em funções, e antigo chefe da CIA, George H. W. Bush. Perdeu para este por uma diferença de 8% no voto popular, 53,4% contra 45,6%, a que corresponderam 48 milhões de votos para Bush e 41 milhões para Dukakis. Mas, claro, nos votos do colégio eleitoral a diferença foi muito superior, 79% contra 21%, atendendo a que Bush era o representante do que se designa por "complexo militar-industrial americano".

Actualmente um bem-humorado ex-professor de Ciência Política, com 80 anos, Dukakis, mais tarde, pediria desculpa ao povo americano por não ter ganho uma eleição que certamente teria impedido a ascensão política do filho do seu adversário, George W. Bush!

Dei pois o meu tempo por bem empregue, pois Dukakis fez uma crítica desassombrada, e não muito habitual em políticos ou académicos americanos, ao poderoso complexo militar-industrial dos EUA, como se sabe precocemente denunciado como excessivo e perigoso pelo general Eisenhower, quando terminou o seu último mandato presidencial, em 1961.Como se se tratasse de uma sabatina, Dukakis perguntou à audiência quem tinha feito a afirmação de que os EUA, tendo embora apenas cerca de 6% ou 7% da população do globo, pretendem impor a sua vontade ao resto do planeta. O seu autor, que ninguém adivinhou, foi o Presidente Kennedy, que seria assassinado em 1963. Dukakis criticaria ainda o sempre crescente poderio militar dos EUA e o aumento exponencial das suas bases militares em todos os continentes, mais de 20 anos depois de a Guerra Fria ter terminado.

Contam-se pelos dedos os especialistas em Relações Internacionais americanos críticos da política externa dos Estados Unidos, por isso é sempre interessante ler ou ouvir Immanuel Wallerstein, Noam Chomsky, John Mearsheimer e poucos mais. Mas até um dos nomes mais sonantes da escola realista, Kenneth Waltz, falecido há um ano, publicou um pouco antes de morrer um artigo que surpreendeu a maior parte dos especialistas, ao defender que o Irão devia possuir armas nucleares. Na revista Foreign Affairs de Julho/Agosto de 2012, com o título Why Iran Should Get the Bomb, defendeu que devia ser permitido ao Irão possuir a bomba atómica, porque o equilíbrio com Israel, a outra potência nuclear da região, far-se-ia como durante a Guerr Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, ou entre a Índia e o Paquistão, mais recentemente. As potências nucleares, segundo ele, tornam-se mais cautelosas na sua actuação, no que resulta uma maior estabilidade entre elas, na região e no mundo. Um outro especialista da escola realista, corrente que defende a não influência das organizações internacionais nas relações entre os Estados, que assim perseguem os seus únicos e exclusivos interesses como entendem, John Mearsheimer, surpreendeu agora com um artigo, também na Foreign Affairs, Setembro/Outubro 2014, com o título Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault, em que desmonta toda a argumentação que nos é fornecida diariamente pelos media ocidentais sobre a diabolização da Rússia nesta crise. Defendendo que a Realpolitik se mantém, ou seja, que os interesses nacionais dos Estados prevalecem sobre as decisões das organizações internacionais, Mearsheimer critica aqueles que, como na Europa, pensam que os princípios do Estado de direito e a interdependência económica bastam para resolver os diferendos. Em 1994 publicou The False Promise of International Institutions, estudo muito bem elaborado, em que tenta demonstrar que as organizações internacionais são ineficazes na resolução dos conflitos em política internacional. Agora, acerca da crise na Ucrânia relembra os acordos celebrados entre Gorbatchov e os dirigentes ocidentais, aquando da unificação da Alemanha, segundo os quais a NATO não avançaria até às fronteiras da Rússia, nem criaria bases militares em países seus vizinhos que os ocidentais não respeitaram. Com efeito, a aliança começou a expandir-se para leste em 1999, sob a presidência de Clinton, e depois em 2004, ano em que houve também o primeiro alargamento da União Europeia aos países da Europa de leste. Se o alargamento desta última tem a sua lógica, como complemento do mercado europeu e até com a perspectiva de um alargamento desse mercado à Rússia, já a expansão militar tem implicações diversas das da União Europeia, sendo que esta corresponde a uma potência civil, como tenho sublinhado por várias vezes em artigos e estudos mais aprofundados que publiquei. Em suma, Mearsheimer acusa a NATO, os Estados Unidos e a União Europeia de serem os causadores de uma crise muito perigosa, que poderá alastrar para um confronto de consequências inimagináveis. E pergunta: o que fariam os americanos se a China se propusesse criar uma aliança militar à porta dos Estados Unidos, convidando o México e o Canadá para nela participarem?

É a oportunidade rara de encontrarmos um ponto de vista crítico como este nos media ocidentais que nos leva à necessidade de procurar outros, como actualmente a Russia Today ou a Al-Jazira, esta principalmente no que respeita ao Médio Oriente. E ainda temos de ouvir o papaguear do costume dos defensores da “sociedade aberta”, numa altura em que o etnocentrismo nunca foi tão preponderante – ou seja, a incapacidade, no Ocidente, de se tentar compreender o mundo actual onde há um muito maior equilíbrio entre os vários poderes em cena, depois dos 40 anos de bipolarismo da Guerra Fria. Os Estados Unidos têm um desígnio de poder global, que está bem patente na descoberta recente da espionagem efectuada pela NSA e o seu correspondente britânico. Os seus gastos militares ultrapassam os das outras grandes potências em conjunto e possuem ainda programas secretos que confirmam a sua vontade de poderio mundial, como o da utilização do espaço para fins militares. Tudo isto é observado pelos seus antigos rivais, Rússia e China, com perplexidade, justificando todas as cautelas e também por vezes reacções oportunistas como foi a da ocupação da Crimeia. Mearsheimer, no artigo em causa, descreve todas as acções claras e obscuras que levaram ao afastamento ilegal do último Presidente da Ucrânia eleito, porque não agradava aos interesses ocidentais. Claro que a União Europeia, hoje completamente à deriva no que respeita à sua política externa e a muitas outras coisas, tem também o seu quinhão de culpa, ao acompanhar os movimentos americanos para substituir os dirigentes ucranianos. Os perigos de confrontação com os interesses vitais da Rússia são muito grandes, acontecendo isto com um presidente americano pacífico, opositor da invasão do Iraque em 2003. Pense-se no que poderá acontecer com um outro George W. Bush que possa aparecer nos próximos anos. Só nos restará pedir a ajuda da Virgem de Fátima!

Investigador em Relações Internacionais e antigo funcionário da Comissão Europeia

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