A contagem de votos do referendo da Crimeia será à porta fechada

Para não perturbar as pessoas com notícias de que a península estava a ser ocupada pelos russos, as televisões privadas ucranianas foram banidas. Os observadores internacionais não vão estar presentes. Nas mesas de voto, só estarão "pessoas de confiança".

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Voluntários russos juntaram-se na praça Lenine, em Sinferopol Filippo MONTEFORTE/AFP

O referendo foi organizado à pressa, para evitar as provocações, explicou o primeiro-ministro. “Quanto mais depressa, melhor”, disse ele ao PÚBLICO, durante a conferência de imprensa de ontem, quando colocado perante a hipótese de ter preparado a consulta com tempo e legalidade.

Quanto à presença de observadores internacionais ou organizações independentes, Sergei Aksionov disse não saber. “Esses pormenores, terá de perguntar nas comissões do parlamento”. Já para a questão das restrições e agressões a jornalistas tem uma explicação própria: “Só houve problemas com certos jornalistas que vieram lançar provocações sobre as milícias de auto-defesa. Nós queremos que todos os jornalistas possam fazer uma cobertura adequada do referendo”.

O director da comissão eleitoral, Michail Malichev, dissera que todos os jornalistas poderão ter acesso aos locais de voto, embora não durante a fase de contagem. Aí, será à porta fechada. Mas as acreditações para o evento ainda não foram emitidas. Registos por email foram solicitados para endereços diferentes, além de preenchimentos de fichas e outros papelinhos que eram sistematicamente perdidos pelas jovens jornalistas recém-transformadas em funcionárias em traje formal do novo Centro de Imprensa, que funciona no Crim TV, o canal estatal onde um novo produtor leva todas as manhãs as notícias já escritas para serem lidas pelos pivots.

Aos canais privados ucranianos foi dito explicitamente que não poderiam cobrir o referendo. Além disso, para não haver riscos, os canais foram encerrados. Só lhes restam as emissões por cabo e satélite. O deputado Sergei Shuvainikov, um dos responsáveis pela organização do referendo, explicou-nos as razões da medida: “Esses canais andavam a dizer que a Crimeia estava ocupada pelos russos, que havia armas por todo o lado. Só tinham notícias negativas. Decidimos fechá-los, para que as pessoas se sintam em paz, e possam ir votar sem pressões”.

Quanto aos observadores internacionais, Shuvainikov garante que os convidou. “Enviámos convites para a Europa, EUA, ONU. Não responderam”. Questionado sobre a possibilidade de não ter havido tempo sequer para a volta do correio, o deputado admitiu que foram obrigados a encontrar um compromisso: “Por um lado precisávamos de mais tempo para organizar isto melhor. Por outro, era urgente avançar, antes que os fascistas de Kiev viessem por aí abaixo”.

"Eram provocadores"
Apesar da pressa, alguns observadores conseguiram chegar a tempo. Foi o caso de um grupo da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), que no entanto foi barrado na fronteira. “Não eram verdadeiros observadores, mas sim homens fardados, que só vinham recolher informações militares”, explica Shuvainikok. “Eram provocadores. Se tivessem vindo com roupa normal, teriam entrado”. Quanto ao representante do secretário-geral da ONU, que foi ameaçado na rua em Sinferopol e obrigado a fugir, isso deveu-se ao facto de “não ter pedido autorização ao governo e deputados para os contactos e as declarações que vinha fazer”.

Em suma, observadores não haverá nenhum. Excepto “organizações de activistas e os grupos de auto-defesa”. Os partidos não foram convidados, porque “isto não é uma eleição de partidos. Não tem nada a ver com política”.

Nas mesas de voto haverá “representantes da população”, pessoas comuns que puderam inscrever-se, nos últimos dias. “Mas não era qualquer pessoa na rua que podia dar o nome. Tinha de ser alguém de confiança, para evitar provocações”.

As equipas, constituidas pelos “activistas”, os elementos da “auto-defesa”, os representantes do Estado e os voluntários farão uma primeira contagem dos votos, à porta fechada. Elaborarão um relatório, assinado por todos. Depois enviarão os boletins para o parlamento, onde será feita a contagem final, na presença apenas dos deputados.

Pelo menos 80% das pessoas votarão a favor da integração na Rússia, disse o primeiro-ministro e vários deputados, citando uma vaga sondagem, de que nunca precisaram a autoria nem a ficha técnica. O anunciado boicote da população tártara não é de levar a sério, disse Aksionov, porque, explicou, “o conselho dos tártaros (Majliss) não é representativo de toda a população tártara”.

E se a maioria da população não votar? Para o deputado Shubainikov, isso implicará a anulação do referendo, e a elaboração de um “novo plano”. Já o primeiro-ministro não é tão categórico. Não sabe o que fará nessa circunstância. Se a pergunta sobre a integração na Rússia não obtiver a maioria, aí sim, “será criada uma comissão para decidir o que fazer a seguir. Mas essa hipótese é absurda”.

Alerta máximo
As unidades de auto-defesa estarão em alerta máximo, durante a realização do referendo, entre as 8 da manhã e as 8 da noite, “para combater quaisquer provocações”. As bases militares ucranianas continuam cercadas por forças russas, que as obrigarão a entregar as armas até segunda-feira.

Apenas uma base parece não estar cercada. É o quartel da zona A4408, em Sebastopol. “Os russos estiveram cá, mas foram embora”, contou o soldado de sentinela. “Voltaram. Fizeram um ultimato: teríamos de entregar as armas dentro de uma hora. O nosso comandante recusou. Depois disseram que tínhamos um dia. Já fizeram cinco ultimatos”, disse o soldado, olhando apreensivo para os veículos militares russos que iam passando na rua em frente. “Nós gostaríamos de votar no referendo”, disse ainda. “Mas acho que não podemos. Os nossos nomes não constam das listas”.

checkpoints em todas as estradas da península. Os mais rigorosos instalaram-se na zona da fronteira, que separa a Crimeia do resto da Ucrânia. Por aí é difícil passar. Até as equipas de jornalistas estrangeiros foram barradas, ou obrigadas a entregar todo o equipamento.

Em redor de Sebastopol há seis checkpoints, com um total de cerca de 300 homens. Num deles, na estrada que liga Sebastopol a Sinferopol, o comandante explicou que todos os que ali estão são voluntários. Ele próprio, Alec Galavai, de 48 anos, decidiu ir para ali quando soube que “os fascistas se preparavam para atacar a Crimeia”.

Alec foi oficial do exército em Kamchetka, no leste da Sibéria, hoje está reformado. Ofereceu-se como voluntário e constituiu uma equipa. Recorreu a organizações de cossacos em Sebastopol, que por sua vez chamaram os colegas cossacos da Rússia.

Sotnia Nicolai, 55 anos e uma estatura de gigante, é um deles. Veio da região russa do Don. “Os camaradas de Sebastopol convidaram-me”, diz. “Tudo pago, hotel de luxo, não estamos nada mal aqui”. A sua missão é revistar os carros em busca de armas. Até agora não encontrou nada.

O checkpoint tem vários veículos, uma tenda, um tanque coberto com panos. “É um tanque antigo, propriedade de um amigo meu que tem uma agência turística”, disse o comandante. “Pedi-lhe o tanque só para enfeitar. É para meter medo”. Como armas de fogo, o piquete tem só duas espingardas. Mas se for preciso chamam a polícia que usa armas automáticas. Todas as unidades de auto-defesa da região de Sebastopol são comandadas por um mesmo homem, chamado Alexei Michaelich Xalei, diz o comandante. “As unidades de Sinferopol estão sob o controlo pessoal por Aksionov”.

Na tenda, um grupo de mulheres preparou sopa, sandes e vários petiscos para os voluntários. “Não nos conhecíamos, agora somos muito amigas. Já combinámos, todos os anos nesta data viremos aqui para comemorar a entrada da Crimeia na Rússia”, disse  Znaida Raustava, servindo a todos, jornalistas incluidos, uma sopa Salanka.

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