A cigarra e a formiga

“Um conto de crianças” ganhou as eleições gregas. É o que diz Pedro Passos Coelho, esse grande filósofo moral. Para ele, as propostas do partido vencedor, o Syriza, que começou por fazer o mais básico (paralisar novas privatizações e repor o salário mínimo de há cinco anos atrás), são as de quem “não quer assumir os seus compromissos, não pagar as suas dívidas, querer aumentar os salários, baixar os impostos e ainda [julgar que] os seus parceiros [têm a obrigação de] garantir o financiamento sem contrapartidas” (PÚBLICO, 26.1.2015). Não haverá, entre aquela revoada de assessores de São Bento, alguém que explique ao lamentável PM que temos que de “faltar a compromissos” é do que ele menos pode falar? Ele, o homem que garantiu em 2011 que não despediria funcionários públicos nem cortaria pensão alguma de reforma – e meses depois fez uma coisa e a outra, e muito pior do que alguma troika tinha pedido, a ele ou ao outro filósofo que o antecedeu, Sócrates.

O ministro Marques Guedes elevou o nível do debate ao dizer que a Grécia e Portugal dos últimos anos, cheios de nova pobreza, fome, morte por deliberado desleixo público e emigração, lhe “lembram a história da cigarra e da formiga” (DN, 29.1.2015). Suponho que o ministro se referiria a essas cigarras gregas, desavergonhadas, cuja mortalidade infantil aumentou 40% desde que as receitas da troika levaram ao corte de outros 40% (desde 2008) do orçamento para a Saúde. Já em 2011, Piet Moerland, um dos grandes patrões da banca holandesa (esse país de formiguinhas, como bem se percebe visitando Amesterdão), achava que os gregos “precisam de sentir o patamar da dor” (citado por I. Beugel, NRC Handelsblad, 21.6.2011). Eis a dor: “35 mil médicos, enfermeiros e outro pessoal sanitário perderam os seus empregos. (…) As novas infeções por HIV mais do que duplicaram (...) — o orçamento para a troca de seringas foi cortado.” O mesmo aconteceu aos programas de combate ao mosquito da malária – e a doença manifestou-se “em números significativos pela primeira vez desde os anos 70” (D. Stuckler, S. Basu, “How Austerity Kills”, New York Times, 12.5.2013). E eis o indício: devem ser cigarras que andam a morrer nas urgências dos hospitais públicos portugueses.

 

No seu “conto de crianças” pessoal, Passos explica que “a troika não pede para ir aos países. (…) Em Portugal, por exemplo, foi o Governo que chamou a troika”. E na Grécia também. Exatamente como aqui: um governo socialista, com a assinatura por baixo do maior partido da direita, que rapidamente substituiu os socialistas. Como os votos não chegavam no Parlamento, fizeram o que a troika lhes pediu: juntaram-se todos no governo, construíram o famoso “consenso” de que tanto fala Cavaco e mantiveram os “compromissos” de que tanto falam eurocratas, ministros alemães e demais democratas-sim-mas. Os mesmos que governaram a Grécia desde 1974 (os mesmos que governam Portugal desde 1976...), lavaram-se de responsabilidades, apresentaram-se como formiguinhas reformistas e declararam guerra às cigarras (primeiro funcionários públicos e pensionistas, depois imigrantes e desempregados, por fim a todo o assalariado). Graças à chantagem “ou nós, ou não há mais salários nem pensões!”, ganharam à tangente as eleições de 2012. Há uma semana perderam-nas por grande distância; em menos de seis anos, os dois partidos do bloco central grego passaram de 5,3 para 2 milhões de votos (32,5%). O que agora sói chamar-se a esquerda radical (o Syriza e os comunistas) passou de 830 mil para 2,6 milhões (42%).

Uma linguagem pseudomoral acompanha a indisfarçável irritação que esta vontade emancipadora dos gregos provoca entre a direita e os socialistas austeritários que governam a Europa. Como reiteradamente tem denunciado Paul Krugman, reemerge do mais fundo da arrogância (e da desonestidade intelectual) um discurso moralista. O dos eurocratas que “continuam a tratar a dívida [pública] como uma questão puramente moral” (NYT, 28.1.2015). Se a explicação económica (ou política) não convence, venham daí as fábulas morais! Funciona até melhor se lhe misturarmos uma dose suficiente de preconceito racista, disfarçado de “incompatibilidade cultural”. Não é preciso ser-se um demagogo populista da extrema-direita holandesa como Geert Wilders para descrever os gregos como “drogados” a quem se não deve dar dinheiro, atitude, aliás, que deve ser seguida com todos os “países do alho”, isto é, os países do Sul da Europa. Esta linguagem tomou há muito conta das elites políticas e económicas da Europa do Norte. Thilo Sarrazin, ex-governante social-democrata alemão e ex-administrador do Bundesbank acha que “se os gregos preferem dormir a sesta em vez de trabalhar, se desejam ausentar-se do escritório para estar com a amante, é lá com eles. (…) Não venham depois pedir-nos que paguemos a fatura” (entrevista a Olivier Cyran, Le Monde Diplomatique, julho 2012). Já antes, a formiguinha Sarrazin, ministro regional das finanças em Berlim, dissera não ter “respeito por ninguém que vive da segurança social (…) e não pára de produzir rapariguinhas de véu na cabeça”, referindo-se a “70% dos turcos e 90% dos árabes” (Lettre International, setembro 2009). Só quando começou a falar de “características genéticas” dos judeus é que alguém reparou que havia racismo naquilo a que Sarrazin chama “libertar-se do politicamente correto”!

Podem os gregos ser quem mais trabalha na Europa (2037 horas/ano, contra 1388 dos alemães, 1380 dos holandeses ou 1712 dos portugueses - OECD. StatExtracts). Pode o seu governo ser o que menos gasta em proteção social de todos os 15 primeiros Estados-membros da UE. A legitimação da mais violenta divisão internacional do trabalho que desde há 25 anos se está a fazer na Europa não se compadece com a realidade. Face à concorrência internacional, uma das soluções encontradas pela nova ortodoxia ultraliberal é a de reconstituir as velhas divisões entre uma Europa rica (o Centro-Noroeste) e uma Europa pobre (o Leste e o Sul). A segunda é desde a implosão do “socialismo real” produtora de mão de obra  e qualificada mal remunerada e quase sem direitos sociais, agora complementada com 70 milhões de gregos, espanhóis e portugueses, que há que convencer a aceitar esse “patamar da dor”. Para erradicar a preguiça.

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